Resquícios da Guerra Fria

Em 1947, Harry Truman era o presidente americano plenamente consciente da ameaça que pairava sobre alguns países, atolados numa crise social e económica trazida com o fim da II Guerra. A Turquia — devido à vontade de expansão soviética para o Mediterrâneo — e a Grécia — mergulhada numa insurreição comunista — eram exemplos de como a União Soviética explorava essas fragilidades e focos de tensão.

Foi neste ano que surgiu a Doutrina Truman, inspirada por Dean Acheson, futuro Secretário de Estado americano e um anticomunista convicto. O objetivo da doutrina era conter a influência vermelha, ajudando, num primeiro momento, a Turquia e a Grécia com recurso a empréstimos. A doutrina foi a semente para o Plano Marshall (1948) e a constituição da NATO (1949).

Em 1948, a Jugoslávia de Tito rompeu com a União Soviética e os EUA viram uma brecha, auxiliando-a. Só que não há bela sem senão, e Acheson, confrontado, em 1949, com a inexplicável ajuda americana a um comunista como Tito, terá declarado internamente que “Tito pode ser um fdp, mas é o nosso fdp.” Crueza maior era difícil: antes um fdp nosso, que um fdp deles.

Até a queda do Muro (1989) e o fim da União Soviética (1991), esta frase, provavelmente apócrifa, foi usada em outras ocasiões com e por outros protagonistas. Talvez com o intuito de iluminar o que bastas vezes parecia ambíguo. Anos depois, por exemplo, a mesma frase foi atribuída a Dwight Eisenhower — presidente dos EUA entre 1953 e 1961 — sobre Anastasio Somoza, ditador da Nicarágua.

Somoza chegou ao poder em 1937, apoiado pelos americanos, e fundou uma dinastia — três Somozas foram presidentes do país, dois deles acabaram assassinados. A sua utilidade residia no facto de odiar o comunismo e de ter executado, em 1934, Augusto Sandino, o líder guerrilheiro que combateu a presença americana na Nicarágua. Somoza acabou morto em 1956, mas a frase ficou: “Somoza pode ser um fdp, mas é o nosso fdp”, terá reconhecido Eisenhower.

Tempos mais tarde, um outro presidente, Ronald Reagan, também lhe viu atribuída a mesma frase. Desta feita usada sobre um déspota que reinava no Panamá. Manuel Noriega era um oficial do exército que trabalhava para a CIA desde os anos 50, ligado ao tráfico de armas e à circulação de dinheiro vivo para as frentes guerrilheiras anticomunistas da América Latina. Revelando-se melhor que a encomenda, Noriega assumiu posteriormente o poder com a ajuda dos americanos, até estes o deporem, em 1989. Entre os dois pontos, Reagan terá admitido “Noriega pode ser um fdp, mas é o nosso fdp.”

Durante todo o período da Guerra Fria, a fricção entre os EUA e a URSS foi uma realidade visível na Coreia, no Vietname, no Afeganistão, em dezenas de países africanos e asiáticos, e nas instáveis América Latina e América do Sul — sem esquecer a Europa. Aliás, os soviéticos também faziam de tudo para preservar os líderes que controlavam. Na Europa de Leste, por exemplo, logo no início do pós-guerra, destacavam-se os “comunistas de Moscovo” Walter Ulbricht (Alemanha de Leste), Klement Gottwald (Checoslováquia), BolesÅ‚aw Bierut (Polónia), Mátyás Rákosi (Hungria) e Georgi Dimitrov (Bulgária). Anne Applebaum identificou-os como os “pequenos Estalines”. Eram todos uns fdp. Mas eram os fdp deles. Muitos outros se seguiram.

A Guerra Fria foi, neste contexto, mais sobre utilidade do que sobre ideais. Ditadores serviam democracias e tiranias, desde que alinhassem com o lado certo. A frase “pode ser um fdp, mas é o nosso fdp”, talvez nunca tenha sido proferida, mas capturou com precisão o espírito de uma época em que se cedia facilmente os princípios à estratégia, os meios aos fins. Mas será que esse legado persiste? Será que essa lógica de conveniência continua a granjear apoios, a fomentar silêncios e a forjar alianças? Na grande ou na pequena política, o lado em que estás vale mais, ou menos, do que aquilo que fazes?

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *