Memória ativa em comunhão com o mundo

Akhmed, que nos conduziu até à estação de comboio pois as portas do carro que tínhamos reservado não abriram, abriu-nos uma bonita janela para a sua Chechénia: falámos de comida georgiana e do prato nacional checheno: cubos de carne com massa cozida, acompanhada do líquido que se utilizou para cozinhar a carne, e que é bebido. Comentámos que à mesa nos entendemos.

Mais ao final do dia, um pouco antes da final da Liga dos Campeões, uma janela de um carro abre-se e um dos ocupantes pergunta-me se pode parar ali. Não lhe sei dizer. É [do] PSG? Não, sou português. A cabeça sai mais do vidro – «italiano, português: é tudo igual». Eu que já avançara volto atrás e digo-lhe que somos todos iguais; alguns é que não percebem isso. A talho de foice, ou de Machado, o partido Chega tornou-se na segunda força política em Portugal com os votos da emigração, apesar de o PS, no cômputo geral, ter tido mais votos. A newsletter da Bárbara Reis do PÚBLICO, intitulada Livre de Estilo, de 28 de maio de 2025, baseia-se num estudo de João Pinhal, da Universidade Nova de Lisboa, sobre a maneira como os meios de comunicação social privados, em diferente grau, deram um destaque desproporcionado ao líder do Chega entre outubro de 2019 e junho de 2024. O título da newsletter vai ao cerne da questão: «Ventura entrevistado 61 vezes nas TV, mais do que Rio e Montenegro juntos».

A nossa filha mais velha, Laura, celebrou no dia da criança a sua primeira comunhão, e teve a felicidade de ter presente uma parte da família portuguesa e uma parte da família alsaciana. À laia de preparação, fui com os meus pais ver a exposição The Family of Man (A Família do Homem), uma exposição de 503 fotografias por 273 fotógrafos de 83 países reunidas por Edward Steichen para o Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova Iorque, agora em exposição permanente no Norte do Luxemburgo, integrando a Memória do Mundo da UNESCO. O post-guerra também produzira uma esperança humanista que se revelava na fotografia e que a fotografia nos revelava. Por vezes, quando a confiança na humanidade vacila é imperativo rever esta exposição para sair de lá entusiasmado e com a certeza – para quem não a tivesse – que somos todos parte da mesma família.

Durante a homilia, o sacerdote que celebrava a primeira comunhão disse-nos que não há comunhão sem confiança – e esta confiança deve levar-nos a dizer presente quando a situação o exige. A dado momento, disse-nos também que nos déssemos as mãos e fizemos uma grande corrente viva que não mais deverá ser separada: talvez nunca me tivesse apercebido da confiança que depositamos quando damos a mão a alguém. Toda esta confiança a vi nas lágrimas do rosto da realizadora Hafsia Herzi quando Nadia Melliti, que a realizadora encontrara numa marcha do orgulho, recebeu o prémio de melhor interpretação feminina em Cannes, na sua estreia enquanto atriz no filme La Petite Dernière sobre a emancipação de uma jovem muçulmana lésbica.

Faleceu recentemente o fotógrafo brasileiro, que adquirira nacionalidade francesa, Sebastião Salgado, e que bonita homenagem lhe prestou o jornal francês Libération. Talvez a sua exposição Génesis se debruce sobre uma família mais alargada, além da humana, que inclui a natureza, que também somos. O artigo que lhe foi dedicado relembrava também o que Lula dissera de Salgado: «um caçador de luz num mundo de trevas».

Nos 50 anos do 25 de Abril, o fotógrafo português Alfredo Cunha teve uma retrospetiva da sua obra no Luxemburgo e falou do modo como a Family of Man o inspirou. Que nos deixemos inspirar por esta ampla família de que fazemos parte e que, a exemplo da Family of Man, sejamos uma memória ativa em comunhão com o mundo. Sem isto, na senda do que dizia o Samuel, da Eritreia, no café des langues (café de línguas) no MUDAM, no Luxemburgo, podemos até ter uma casa, mas não teremos um lar.

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