Hoje, tenham paciência, assentem-se aí um belisquinho, que eu vou falar do dote e destas pequenas d`agora que não sabem o que isso é. Eu sei que os tempos são outros e que temos de evoluir, elas não são obrigadas a nada, muito menos a arranjar o dote, mas é uma pena. O dote tem o seu encanto e é tão bom deixar um registo nosso para a posteridade.
Pois…Já dizia Camões “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mas acreditem-me que se puxarmos por estas pequenas modernas, há sempre uma que fica curiosa e até acha graça aos trabalhos do antigamente. Foi o que aconteceu há uns tempos na escola. Eu via, nas horas mortas, umas adolescentes jogadas para lá, a mexer no telemóvel. Mas que desmazelo! Mas que desperdício de tempo! Foi então que levei agulhas de croché e lãs para lhes ensinar a arte de estarem ocupadas de mãos e espantar o stress.
Mostrei-lhes coisas lindas que se podem fazer com as linhas ou lãs, como por exemplo, bolsas, tops e guarnições para pregar nas t-shirts. Claro que nem todas estavam lá à hora combinada para aprenderem a pegar na agulha e a persistir. As que iam disputavam as lãs e as cores preferidas. Que coisas lindas fizeram! Se houver vagar para as jovens, elas aprendem e aprendem com amor. É preciso saber que temos cá dentro um manancial de sabedoria e experiência connosco a partilhar com as futuras gerações. Como ando a reler Viagens na minha terra de A. Garrett, faço aqui um parêntesis para recordar o que o autor diz no capítulo XXIV, acerca da sociedade e seus desvarios: “Formou Deus o homem e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. (…) o homem, assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na Terra.” Penso que A. Garrett, no século XIX, não estaria longe da verdade do século XXI. Seria o dote um inferno de tolices?
Enfim, adiante. Ao dote. O dote das minhas primas mais velhas encantava-me, sobretudo o de uma em especial.
Era um mistério enorme aquela arca maior do que eu que ficava cuidadosamente encostada por baixo da janela do quarto de dormir dos tios. Se estava lá, era porque seria substância de resguardo e de segredo longe do alcance de todos.
Lá tanto eu pedi que minha prima se resolveu a me mostrar o que era o dote. Refundeou tudo com pachorra de me aturar e ia dizendo, quando eu pedia desculpa pela maçada, que não fazia nada, que era preciso arejar o dote, quadenão podia apodrecer, o que era uma grande perda e falava-me de uma rapariga que também andava para casar como ela, a quem tinha acontecido uma grande desgraça daquelas, por nunca abrir a arca e pôr o dote ao sol. Bordados, crochés, toalhas, lençóis e fronhas com entremeios, guardanapos, tudo um primor feito pelas mãos da minha prima, com aplicações de mimos e jarros e malmequeres a ponto francês, com ponto de corda, ponto grilhão, ponto cadeia, ponto atrás, matiz, tudo à mistura numa profusão de cores a lembrar um jardinzinho todo catita. Com aquele tesouro debaixo dos meus olhos, eu também quis aprender de tudo um pouco. Minha prima ensinou-me a fazer croché, a tia Elvira iniciou-me nos bordados. Ganhei o gosto. De modo que sempre quis ensinar esta alegria às pequenas novas.
A minha primeira peça do dote foi minha madrinha Jazinha que ma deu, quando eu fiz doze anos: um cobertor comprado na Matimar, onde hoje é a Calzedónia, na esquina da Fernão Ornelas, e custou mil e cem escudos. Ainda o tenho e continua atual. Para mim vai dar. Quem quiser melhor que compre. Todo o meu dote serviu e ainda serve. Os bordadinhos nos paninhos de linho que a tia Elvira comprava à saca a cem escudos na Casa de Bordados da rua da Conceição ainda existem e são um encanto para os meus olhos. Como foi possível eu ter feito tanta coisa linda, quando era apenas uma criança? Obrigada a quem me ensinou e me ajudou a acreditar que eu era capaz. Um paraíso de delícias.