Portugal atravessa um momento inquieto. A confiança nas instituições esmorece, os salários não acompanham o custo de vida, jovens desesperam perante a precariedade e os discursos extremistas ganham palco. Entre as promessas não cumpridas e o quotidiano difícil, instala-se um sentimento de desassossego. É neste cenário que o livro se afirma como bem essencial: não apenas cultural, mas político e cívico. Ler é, hoje, mais do que nunca, um gesto de resistência e de reflexão.
A literatura portuguesa tem uma longa tradição de pensar o país em tempos de crise. Camões, em “Os Lusíadas”, já exprimia uma crítica disfarçada à apatia política do seu tempo. A grandiosidade dos feitos portugueses contrastava com a falta de visão dos que governavam. Hoje, o cenário mudou, mas a tensão entre o potencial coletivo e a realidade concreta continua a atravessar a sociedade portuguesa. A leitura torna-se, assim, um lugar de confronto com estas contradições.
Fernando Pessoa escreve em “Mensagem” que «somos da raça daqueles que partem». Essa frase, lida à luz da nova vaga de emigração jovem, adquire um peso atual. Os livros não são meros objetos do passado: são espelhos que devolvem à sociedade as perguntas que muitas vezes evita fazer. Perguntas sobre quem somos, para onde vamos, o que valorizamos e o que sacrificamos.
Na literatura contemporânea, essa função reflexiva continua viva. Em «Nenhum Olhar», José Luís Peixoto mergulha num Portugal interior, esquecido, onde a solidão e a dureza moldam vidas silenciosas. Obras como «As Primeiras Coisas», de Bruno Vieira Amaral, revisitam os subúrbios lisboetas com uma linguagem crua, mas poética, desmontando mitos e denunciando injustiças. Ana Margarida de Carvalho, com «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato», constrói uma narrativa densa e poética sobre a fragilidade humana e a violência das estruturas sociais. A sua escrita exige atenção e mergulho, resiste à pressa e à superficialidade. É leitura que incomoda e, por isso mesmo, transforma. Em «Estuário», Lídia Jorge traça um retrato perturbador de um país à deriva, onde as novas gerações enfrentam um futuro incerto. A autora articula, com grande sensibilidade, temas como o poder, a memória e a responsabilidade coletiva. A literatura, aqui, é chamada a intervir, não a adormecer.
Estes livros não trazem soluções fáceis. Mas obrigam a parar, a pensar, a sentir — algo que falta num tempo marcado pela velocidade e pela superficialidade. Numa sociedade onde o debate político se esvazia em soundbites e redes sociais, o livro oferece o espaço para a profundidade, para o silêncio, para a verdadeira escuta. É no tempo lento da leitura que se desenvolve o pensamento crítico.
Ler não é um luxo. É um ato de cidadania. Os livros não servem apenas para entreter ou decorar estantes: são instrumentos de entendimento, de confronto e, muitas vezes, de mudança. Recusar a leitura — ou relegá-la para um canto elitista — é, no fundo, aceitar uma democracia menos exigente, menos consciente, menos viva.
Neste tempo em que tantos se sentem perdidos, talvez devêssemos voltar aos livros como quem procura uma bússola. Não para fugir da realidade, mas para a compreender melhor. Afinal, como escreveu Vergílio Ferreira, «Ler é ser chamado a um mundo outro e, ao mesmo tempo, profundamente nosso». E é nesse exercício, íntimo e coletivo, que Portugal poderá reencontrar um caminho.