No dia do grande apagão ibérico, sonhei que tinha caído num buraco escuro e apertado e comecei a morrer lá dentro, mas quando acordei não me lembrava de nada. Ainda fiquei um bocadinho na cama a puxar pela cabeça, mas não me lembrava mesmo de nada e então levantei-me sem pressa. Era o meu dia de folga e eu não tinha pressa para nada.
Andei sozinho e à deriva toda a manhã entre a zona da Ajuda e a Praia Formosa e também fui ao Laranjal tratar das galinhas e confraternizar com o Tonecas, de modo que só dei conta do grande apagão ibérico depois do almoço, o que não é de admirar, pois não teve impacto na Madeira e além disso eu estava de folga, estava desligado. Seja como for, a certa altura consultei os jornais no telemóvel e aquilo fez-me logo lembrar os apagões que havia naquele tempo, em que ficava tudo às escuras exceto a emissora do Cambado e o Hospital da Cruz de Carvalho e depois a luz nunca mais vinha e era preciso acender velas e candeeiros a petróleo e a gente nunca sabia ao certo onde estavam as velas e quando a luz vinha o meu sítio era sempre o último a iluminar-se.
Fiquei a tarde em casa, tomado por uma sonolência inebriante que me fez esquecer a presença do corpo e da alma em mim, como se não os possuísse, até que por volta das seis, talvez às seis e meia, um pensamento qualquer acendeu-se no fundo do meu cérebro e libertou-me do torpor e eu decidi dar um passeio a pé e o passeio começou na escadaria do prédio, pois eu raramente uso o elevador.
Quando cheguei à rua, hesitei.
– Esquerda ou direita?
Perguntei-me, quase em voz alta, o que também não é nada raro em mim, esta coisa de falar sozinho. Antes pelo contrário, falo muitas vezes sozinho, como fazem os velhos e os loucos e os desesperados, embora ainda não pertença a nenhum destes grupos, acho eu…
– Esquerda ou direita?
Escolhi a esquerda, se calhar porque sou canhoto, e no preciso momento em que escolhi a esquerda lembrei-me do sonho. Eu fazia um esforço tremendo para sair do buraco, mas estava de tal modo entalado que não me conseguia mexer e a minha expressão era de horror e tristeza, uma tristeza e um horror puros, nunca antes revelados, cristalinos, límpidos e agora eu ia pelo caminho a pensar naquilo como se continuasse dentro do buraco a morrer – estou a morrer, meu Deus, estou a morrer.
O meu sofrimento era imenso e eu estava a chorar dentro daquele maldito buraco e a luz que lá entrava, um fio de luz, iluminava apenas o meu rosto e dali eu vi um homem debruçado sobre a abertura do buraco a espreitar e esse homem era eu, mas não o reconheci. Por outro lado, olhando de cima para o interior do buraco, eu vi aquele homem a morrer, mas também não o reconheci.
Quanto mais caminhava, mais clara se tornava a imagem do sonho, embora não a conseguisse segurar do princípio ao fim, ou seja, um aspeto tornava-se nítido aqui, outro além, outro ainda mais ao fundo, enquanto eu ia pela Rua Vale da Ajuda adiante, depois pela Rua Velha da Ajuda, a Rua da Casa Branca, a Travessa do Valente, a Estrada Monumental em direção ao Lido, sempre em frente até ao Enforcado, a seguir a Travessa dos Piornais, a Rua Basto Machado, a Rua dos Piornais e outra vez a Rua Vale da Ajuda – fim do passeio.
A certa altura, algures no decurso deste trajeto, percebi que os dois homens no sonho – o que estava espremido no buraco e o que espreitava pela abertura – eram eu, os dois eram eu, mas sem barba. Por isso, não os reconheci. Há mais de 10 anos que uso barba e ela já passou de preta a branca, de modo que me esqueci do contorno original da minha cara.
De repente, a expressão de dor transformou-se num amplo sorriso dentro do sonho e eu vi o céu abrir-se e inexplicavelmente deixei de estar enfiado no maldito buraco, senti-me livre, mas o eu que espreitava ainda continuava a ver o outro na mesma situação e vice-versa. Desarmado, olhei em redor e acordei.
Sou eu… Quem sou eu?
Se calhar, ainda rapo a barba, pensei ao chegar a casa.