Heterónimos das redes sociais

Como era bom ter um perfil falso. Vá, admitamos: quem nunca teve um? Ou pelo menos nunca quis ter? Um cantinho anónimo para espreitar, comentar, provocar ou simplesmente existir sem ter de levar com o peso do nome próprio e da fotografia do batizado.

Lembram-se das aulas de Português? Aqueles dias em que nos tentavam impingir o Fernando Pessoa e os heterónimos? Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares… e o próprio Pessoa, esse mestre do “sou muitos, mas sou eu”. Na altura parecia tortura. Mas afinal… era treino!

Treino para os dias de hoje, em que estamos todos nas redes sociais e ninguém é exatamente quem parece ser. Quem dizia que o que aprendíamos na escola não servia para nada… olha, aí está a prova de que serviu: estamos todos a viver como heterónimos nas redes sociais.

Há perfis falsos para todos os gostos. Políticos, futebolísticos, emocionais, provocatórios, dramáticos, catastróficos. Gente que comenta com fúria, que dispara certezas e que manda larachas como se estivesse a declamar poesia moderna num tasco.

Como diria – ou não diria – Fernando Pessoa:

“O perfil é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é gente, quando só quer ser comentador.”

Não era bem assim, eu sei. Mas soa bem no TikTok.

Temos os perfis estilo Álvaro de Campos, sempre revoltados com tudo e mais alguma coisa. O mundo é uma máquina mal calibrada, ninguém os entende, e o algoritmo também não ajuda. São os do tipo “não sou nada, nunca serei nada, mas vou deixar 38 comentários numa publicação do JM-Madeira para provar o contrário ou votar 50 vezes num inquérito qualquer”.

Depois há os Ricardos Reis das redes, os que observam em silêncio, com pose de filósofo de sofá, vendo tudo, julgando com likes contidos e comentários que parecem máximas romanas: “Deixem-se disso. Aproveitem a vida.” Mas com um emoji de requinte qualquer.

E claro, os Caeiros, os mais puros. Os que só querem partilhar fotos do cão, do nascer do sol no Pico do Areeiro, do bolo do caco com alho ou até da espetada. Fingem que não estão ali para nada, mas estão. Sempre estão.

E depois, a fauna alargada:

Os catfish, que querem ser outros – mais bonitos, mais interessantes, mais influencers.

Os stalkers, discretos, calados, atentos, que sabem mais sobre a tua vida do que tu e até ver a ex-namorada ou namorado bloqueado.

Os burlões, esses verdadeiros artistas, que têm 3 perfis, 2 esquemas e uma conta Revolut sempre pronta.

Os trolls, que só acordam para criar confusão nos comentários do JM ou num qualquer grupo de Ocorrências da Madeira.

E os perfis políticos, cuidadosamente montados para parecerem “gente normal”, mas que, se leres bem, têm sempre um objetivo: influenciar, picar, desviar.

Ah… quase que me esquecia e aqueles que só querem testar a fidelidade do seu companheiro ou companheira.

Sim, meus caros, vivemos rodeados de heterónimos modernos. Uns poetas, outros patetas. Uns com graça, outros com graxa ou até os pagos como especialistas.

Mas o mais importante? Todos aprendemos com Pessoa. Mesmo sem saber. Mesmo sem querer.

E talvez, no fundo, haja uma beleza nisso:

Ser outra pessoa, só por um instante, sem ter de pagar psicólogo nem escrever livro.

Chamem-lhe literatura digital, chamem-lhe esquizofrenia online, chamem-lhe segunda-feira nas redes ou até trabalho. Nós cá chamamos vida moderna. E a verdade é que o Fernando já andava lá… só não tinha o Facebook ou o Instagram, mas uma coisa é certa: “Tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

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