«O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala)».— Roland Barthes, “A câmara clara”, 2022 [1980].
Mahmoud tem nove anos.
Sabemos o seu nome porque, faz hoje um mês, uma sua fotografia, feita por Samar Abu Eloud, foi anunciada como vencedora do World Press Photo de 2025.
Nessa fotografia, o tom dourado da sua pele contrasta com o branco da camisola de alças e com os cabelos negros, quase prolongados pelas sombras em sépia escura, remetendo para o claro-escuro renascentista. Se fosse um quadro seria um Caravaggio.
Mahmoud tem nove anos, e o que nos chama primeiro a atenção é o seu rosto, um rosto que emerge da sombra e procura a luz.
É inevitável: ficamos momentaneamente presos no seu olhar quase semicerrado, na sua expressão quase adolescente, quase dura, exibindo uma quase tranquilidade, simultaneamente ostensiva e resignada. Quase demasiado para um menino de nove anos.
Perturba-nos. Não é a expressão de um menino-rapaz-quase-adolescente, mas ainda não sabemos bem porquê.
Subitamente há algo mais que nos inquieta.
É um estranho sentimento que nos invade e ao mesmo tempo nos envolve, como o crescendo das notas graves da banda sonora de um filme de suspense, algo que nos puxa o olhar para o limite inferior da fotografia.
E então percebemos: faltam sombras abaixo dos seus ombros.
Ali, mesmo onde a luz que entra pela janela se mistura com a sombra que projeta no parapeito da janela, falta um pedaço de sombra.
E é então que reparamos.
Soltamos um grito mudo: o braço!
Ali mesmo, 7 cm abaixo do ombro esquerdo, o braço de Mahmoud deixa de fazer sombra, deixa de ter luz: Um pouco acima de onde deveria estar o cotovelo, o braço deixa de existir.
Depois olhamos rapidamente para o ombro direito apenas para constatar que naquela sombra também não há espaço para o braço direito.
Mahmoud tem nove anos.
Mahmoud tem nove anos e, naquela fotografia, vive agora sem braços, vítima de uma guerra que não devia ter idade para compreender, mas que há um ano e meio faz parte do seu dia-a-dia.
Bem sabemos que as bombas não escolhem alvos. São pessoas. Sim, são pessoas que escolhem alvos porque sabem que enquanto morrerem pessoas em Gaza, incluindo meninas e meninos como Mahmoud podem dormir de consciência tranquila, que ainda acordarão no poder.
Estas crianças não têm mais nem menos culpa, nem mais ou menos direitos do que aquelas que sofreram o ataque de 7 de outubro de 2023. Só são azaradas em maior quantidade porque não têm uma comunidade internacional poderosa que as defenda com o mesmo afinco.
A História ensina-nos repetidas vezes que balas e bombas não matam uma ideia, não matam a vontade de sobreviver, não matam a fome de liberdade, de ter uma terra a que chamem sua e uma casa onde viver em paz.
Haverá, certamente, quem se atreva a dizer que Mahmoud teve sorte. Sorte de ser um dos 33 900 menores feridos em Gaza e não um dos 15 631 mortos, dos quais um terço eram bebés ou crianças menores de cinco anos*.
Mas Mahmoud aos nove anos, quereria apenas ter a sorte das crianças que aos nove anos brincam às escondidas com outras crianças, em vez de se esconderem de soldados e bombas. Ou de poder perguntar o que é o jantar de hoje, em vez de perguntar se há jantar hoje.
Mahmoud tem nove anos, se ainda estiver vivo, e naquela fotografia a sua expressão vai continuar a ferir-nos e a mortificar-nos, no nosso silêncio.
*- os números citados são do Vaticano, no final de março.