Vicissitudes democráticas

Não percebo muito de política, nem de história, mas sei que amanhã estas duas variáveis irão coexistir na celebração de mais um 25 de abril. O 51º, para ser mais exato.

Mais que um feriado nacional, a celebração do Dia da Liberdade leva-nos a refletir sobre o estado da nação, das nossas liberdades (direitos e deveres) e das nossas garantias como cidadãos. Na verdade, não sei se será mesmo assim, ou se para uma maioria da população não estaremos apenas perante mais uma simpática efeméride que se traduz num dia extra de descanso! Sobre as virtudes da data, empurra-se para os políticos a responsabilidade de uma reflexão mais minuciosa que, previsivelmente, acabará por se traduzir na produção de discursos mais ou menos inspirados, provavelmente com umas farpas à mistura, atendendo ao calendário eleitoral em curso. Em suma, um dia como tantos outros, salvo (ou não) pela originalidade do Chatgpt que servirá certamente de inspiração para aqueles cuja oratória não dispensa o recurso às cábulas (digitais).

Mas de democracia também percebo relativamente pouco. Já era nascido no ano da Revolução dos Cravos, mas não vivi a ditadura propriamente dita. Sei apenas o que ouvi, vi ou li sobre aqueles tempos cinzentos, em que a liberdade de expressão era algo com que se sonhava, pois a censura estava omnipresente na vida dos portugueses. As práticas sociais profundamente condicionadas e as restrições aos comportamentos em público eram imensas. Em “apenas” meio século, tudo se modificou! A liberdade de pensamento e de expressão parecem agora não ter limites. E os direitos são, felizmente, mais que muitos (alguns até dirão, em demasia!).

Agora, já todos(as) podemos votar em liberdade, mas uma enorme parcela da população rejeita essa oportunidade. Podemos até opinar e debater construtivamente o nosso futuro comum, mas preferimos mergulhar no mundo pouco virtuoso das redes sociais, alimentando intrigas e insultando o próximo com leviandade. Podemos pensar livremente, dando largas à nossa imaginação, mas optamos por nos deslumbrar pelos encantos da IA, abrindo mão das nossas capacidades criativas que definham lentamente perante gigantes tecnológicos com poderes mais que suficientes para ameaçar a democracia que tanto almejamos. Podemos até expressar a nossa profunda indignação perante as injustiças deste mundo (e contam-se tantas, infelizmente), dando voz aos que não têm, mas rapidamente nos acomodamos ao conforto das nossas vidas imperfeitas, mas ainda assim, muitas vezes melhores que aquelas que acompanhamos nos noticiários internacionais.

Recentemente, o Parlamento Europeu (PE) adotou o relatório anual de 2024 sobre a democracia no mundo e os direitos humanos, alertando para a crescente degradação dos mesmos à escala mundial, face ao aumento do autoritarismo, do totalitarismo, sem esquecer claro, o populismo, tão em moda nos dias que correm.

Neste relatório, constata-se igualmente a condenação do enfraquecimento da proteção das instituições e dos procedimentos democráticos, assim como “os ataques políticos às instituições internacionais, a censura, as ameaças aos meios de comunicação social independentes e a redução do espaço da sociedade civil em todo o mundo”. E nem a IA escapa, com o PE a não esconder a sua preocupação com a ameaça (real) que esta poderá representar para a democracia e os direitos humanos, se ignorarmos a regulamentação mais assertiva desta tecnologia.

Franciscus (assim será justamente imortalizado, segundo a sua vontade expressa), referindo-se à democracia, dizia que esta parecia estar sofrendo das consequências de uma doença perigosa, o “ceticismo democrático”. Poderá não ser o remédio milagroso, mas não deixará de ser uma dica papal não negligenciável: “a participação é o bálsamo para as feridas da democracia”. Dito isto, participemos todos, todos, todos na construção deste pequeno grande país que poderia e deveria ser muito mais do que aquilo que hoje é.

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