Foi o Tonecas que me acordou. Eu estava a dormir sentado no sofá há cerca de vinte minutos, talvez mais, seguramente de boca aberta, com um livro tombado no peito – Ficções, de Jorge Luís Borges – e o Tonecas veio lamber-me a orelha e o pescoço do lado esquerdo, mas no início aquele tecido áspero, esponjoso e húmido a roçar a minha pele manteve-me preso dentro do sonho, como se fosse um elemento onírico decorrente da leitura de Borges, um labirinto onde me perco sempre e irremediavelmente, e tudo continuava a ser apenas as palavras e as páginas folheadas à toa antes de adormecer, algures entre os contos ‘Tlön, Uqbar, Orbis Tertius’ e ‘O jardim dos caminhos que se bifurcam’.
Naquele espaço tão vasto e ilimitado, uma vez mais descobri – digo ‘uma vez mais’ porque nada se descobre de uma única vez – que “ao princípio julgou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação, sendo que agora sabe-se que é um cosmos e que foram formuladas as íntimas leis que o regem, embora de modo provisório”.
Ora, uma conversa destas depois do almoço, que naquele dia incluiu meia garrafa de vinho tinto, é o equivalente a cair num abismo sem fundo, ainda por cima sentado no sofá, na minha casa em Santo António, onde a música da ribeira é superior à dos homens e as ervas daninhas predominam sobre a natureza organizada, de maneira que, enquanto o Tonecas virava cântaros de azáleas no quintal à procura de lagartixas, fiquei a saber, outra vez com grande espanto, ou com espanto renovado, que em Tlön “não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que na nossa língua seria lunecer ou lunar”.
Extraordinário, pensei, ou, se calhar, sonhei.
Folheando o livro, fui parar à página 88, já no jardim dos caminhos que se bifurcam, e depois refleti – era o que estava lá escrito, não se trata de reflexão minha – refleti que “todas as coisas sucedem a uma pessoa precisamente agora”. Ou seja, “passam os séculos e só no presente acontecem os factos; há inúmeros homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente sucede, sucede-me a mim…”
Ouvi um pequeno estrondo no quintal, outro vaso que se quebrava, mas não o compreendi como tal, pois naquele preciso momento tinha chegado à conclusão de que não podia ser um homem de meios-termos. Não sei como, nem porquê, mas cheguei a esta conclusão. Estava a cair no abismo e não podia ser um homem de meios-termos. Eu dizia para mim: Os meios-termos são como os dias úteis, um tempo que existe para saturar a alma e eu nem sequer acredito na alma. E depois (também não sei onde diabo fui buscar isto) acrescentei: O tempo destrói a ilusão e a morte destrói a vida; o resto é feito de irresponsabilidade e muitas vezes não se sente nada.
Quis-me parecer que tinha anoitecido e então vi a lua surgir por cima de um rio, uma frase que no maravilhoso jardim dos caminhos que se bifurcam, em Tlön, onde já me encontrava há mais de vinte minutos, se diz “para cima atrás duradouro-fluir luneceu”, ou seja, “surgiu a lua por cima do rio”, conforme explica Jorge Luís Borges, e de repente fui tomado pela certeza absoluta de que terei de esperar muitos anos até que os sentimentos se completem em mim, do mesmo modo que terei de esperar muito tempo até que o concerto ou o desconcerto deste ser-completo me prove, com a clareza de uma manhã nova (uma manhã espantosa que ficou lá atrás), que todos os meus passos me conduzem ao infinito áspero, esponjoso e húmido, sim, ao infinito áspero, esponjoso e húmido, ou seja, o Tonecas a lamber-me a orelha e o pescoço do lado esquerdo, tão feliz por me acordar.
– Raio de sonho! – Disse-lhe.
Ele abanava o rabo muito contente e eu levantei-me, deixei o livro em cima da mesa, o sonho perdido dentro de mim e fomos os dois brincar no jardim dos vasos quebrados, um lugar mágico que existe no Laranjal.