Era o tempo do TOP +, do Viva a Música e das tardes com o Júlio Isidro, da animação com o Vasco Granja, do Sandokan, o tigre da Malásia, e do Topo Gigio. A Televisão só depois das seis. Antes disso, apenas nós e as tardes quentes de verão, ou os dias de inverno com os vidros a criarem névoa e a chuva a molhar as azáleas.
Parecia o tempo de uma eternidade, quando, nos degraus do liceu, cantávamos, ao desafina, as músicas que nos chegavam pelo único canal de TV da altura, que apenas encontrava concorrência quando o tempo de leste, por alguma magia magnética, trazia, até ao velho televisor cheio de manias, os canais de Canárias, o Verão Azul do Chanquete e da Bea, ainda antes da versão legendada.
Tudo era, na verdade, uma espécie de magia. Não tínhamos à mão o Google para desvendar quase todas as perguntas possíveis e as suas consequentes respostas, não postávamos a vida ao minuto e, por isso, não tínhamos outro remédio do que vivê-la ao ralenti. A vida, tal como então a conhecíamos, era terreno de mistério e de demora. Gravávamos os momentos assinaláveis num rolo de máquina fotográfica que levava séculos a se revelar e as fotografias lá vinham do passado, com quatro de cinco de olhos fechados, duas de três tremidas, uma de boca aberta, outra a olhar para o lado, outra com a avó desfocada, o pai cortado ao meio, a mãe distraída, o irmão de dedo do nariz. Todos nós um conjunto para a pouca posteridade que nos restaria para mais tarde recordar. Todos de pés cortados porque, e isso não sabíamos na altura, o melhor era realmente não termos corrido tão depressa para o futuro.
E, ainda assim, o que nos sobra desse tempo das fotografias imperfeitas é a alegria quase intocável, a alegria quase perfeita no pouco que nos cabia de futuro e progresso, lento mas presente, a fazer o seu caminho de degradar os dias longos até os tornar esta brevidade que nos calhou também viver. Estes tempos estranhos de tudo ao minuto, e o minuto já passou colado a uma publicação digital como se quer que seja o futuro, que mal ainda é presente e já desapareceu num scroll apressado.
Já não temos espaço para a imperfeição e a demora de uma fotografia antiga. Já não suportamos que a nossa imagem e a imagem do mundo seja desfocada, já não cortamos os pés, porque verdadeiramente já não os sentimos pesados sobre a terra. Não temos cá homens cortados ao meio, e já não temos o pai.
Agora é tudo filtro que nos melhora a realidade, mesmo que ela continue real fora do feed, esse lugar falsamente perene para onde a vida emigrou e está ausente como um deslocado em terra alheia, a balbuciar numa língua desconhecida.
A perfeição está ali atrás do ecrã, dentro do qual a vida pode ser perfeita, mesmo que não o seja na realidade. Mesmo que nos falhe a memória, mesmo que nos falhe o pé descalço no chão do futuro, mesmo que tenhamos essa certeza de que viemos de um passado imperfeito e feliz como uma fotografia dessas que levavam tempo a revelar a sua imensa alegria e a sua perfeita imperfeição.