No dia 27 de junho de 2008, eu estava em Nampula e comprei um caderno de folhas quadriculadas numa das ruas mais movimentadas da cidade. A capa do caderno era amarela canário e tinha lá escrito em letras grandes ‘Exercise Book’, porque era um caderno escolar produzido na África do Sul. Depois, em letras mais pequenas, ‘160 Pages 5 mm Square’ e depois, em letras ainda mais pequenas, ‘Name’, ‘Class’, ‘School’, ‘Subject’, com uma linha à frente de cada palavra para o aluno escrever o nome, o ano, a escola e a disciplina.
Avancei pela rua acima com o caderno na mão e entrei no Bar Restaurante Almeida Garrett – um nome tão português num lugar tão distante – e sentei-me na esplanada, no primeiro andar. Pedi uma Laurentina e um prato de frango assado com batatas fritas e salada de repolho e, enquanto esperava pela refeição, pus-me a escrever, com a mão a tremer um pouco, coisa que me ocorre sempre que escrevo em lugares públicos, porque escrever consiste em revelar segredos e isso mete medo, mais ainda em África, onde tudo, mas mesmo tudo, é completamente diferente, por mais que tudo, mas mesmo tudo, pareça altamente familiar.
O caderno amarelo canário tinha as folhas finas, talvez demasiado finas, mas eu gostava muito dele e pensei que, apesar de a nossa relação ainda estar no princípio, fora dinheiro bem gasto – 20 meticais. Depois, fiquei a pensar na fortuna que haveria de gastar no decurso daquela viagem através das províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa. Em apenas três dias, eu já tinha abrasado o equivalente a cinco vezes o salário mínimo oficial do país, mas considerava-o bem gasto. Além disso, o custo de ser vagabundo em África nunca me alarmou e, por outro lado, sempre me espantou o facto de não me ter faltado nada em qualquer idade da minha existência, até hoje.
No fundo, escrevi a tremer no caderno amarelo canário, eu sou um grande sortudo. O problema é que a sorte não é eterna. Essa é que é essa – é uma lei.
De repente, apercebi-me de que estava muito cansado e cheio de sono, porque tinha dormido pouco e mal na noite anterior, devido à longa e incómoda viagem que fizera em transporte público até chegar a Nampula e também por causa das emoções impostas pela solidão e pela estranheza dos lugares, de modo que estava ali no Bar Restaurante Almeida Garrett a digerir o novo dia nas folhas quadriculadas do caderno amarelo canário, sempre a tremer, e era como se estivesse a dormir e os meus pensamentos fossem sonhos acerca do que tinha ganhado e perdido na vida até então.
A certa altura, faltou-me o tino sobre o que escrevia, enquanto tremia e bebia a Laurentina e sonhava ou pensava e esperava pelo frango assado, completamente sozinho em Nampula, uma cidade com fama de ser muito perigosa, a maior do Norte de Moçambique e uma das mais importantes do país, e lembrei-me que há muitos anos, quando era jovem e imortal, prometera a mim mesmo que haveria de viajar sozinho no terceiro mundo nem que fosse depois dos 40 anos e assim foi, sendo que eu tinha precisamente 40 anos e no dia seguinte partiria para Pemba e dali para o Lago Niassa.
(Contudo, eu ainda não sabia que ‘safari’ é uma palavra suaíli, de origem árabe, que quer dizer ‘viagem’, qualquer tipo de viagem, e pensava que tinha só a ver com animais selvagens.)
Naquele tempo, eu não tinha medo de andar sozinho onde quer que fosse, embora toda a gente me alertasse para os perigos de África. As mulheres têm sida, diziam-me, os mosquitos têm malária, os cães têm raiva, as ruas têm bandidos, a água tem bactérias fatais, a miséria tem presença a mais, a vida tem anos a menos e a minha solidão, pensava eu a tremer no Bar Restaurante Almeida Garrett, tem um profundo silêncio, um silêncio remoto, primordial, um silêncio infinito e então fiquei triste, muito triste, mas, simultaneamente, senti que a tristeza e a solidão haveriam de passar em breve.
É sempre assim.
Toda a tristeza da minha alma e toda a solidão do meu mundo vivem e morrem num instante, como uma borboleta, escrevi a tremer no caderno de capa amarela canário e folhas quadriculadas… Sempre a tremer… No Bar Restaurante Almeida Garrett… Em Nampula… No dia 27 de junho de 2008… E hoje também…