Andas a fazer pouco de mim

Hoje em dia, neste moderníssimo século XXI, muito se fala em bullying. Na escola, isso é o pão nosso de cada dia.

Eu sou uma ignorante em muitas coisas, mas acho que as crianças pequenas deviam ter responsabilidades em casa para se sentirem importantes, não só de vez em quando, teria de ser sempre, pois o ser humano é uma criatura de rotinas e de hábitos. É verdade ou mentira? Por exemplo, quando eu era pequena, antes do 25 de abril, meu pai trouxe para casa umas bonecas velhas que alguém lhe tinha dado na Ford da rua dos Netos. Foi uma alegria. Havia umas que tinham as pernas desencaixadas, outras, os braços, mas a gente começou a cosê-las com uma agulha de tela e elas ficaram perfeitas para brincar. Fomos pedir à menina Maria Laura retalhos de costura para fazer roupinhas para elas e pusemos-lhes nomes. Meu pai deu-me o direito de arranjar no telheiro a minha casinha de bonecas, com a cozinha, os quartinhos com as caminhas feitas com lençolinhos e colchinhas. Um encanto! Ora, eu via que minha mãe e minhas tias tinham flores em cântaros à roda da casa, nos jardins e nos bardos e também eu pus-me a querer flores à volta do meu telheiro. Vai daí, comecei a ir à cisqueira buscar latas de massa de tomate, pegava num prego e no martelo, fazia buraquinhos no fundo da latinha, ponha uma pedrinha rasa no fundo, como a tia Elvira me ensinou, terra em cima e plantava caules de corações, que pegam bem de galho. Que lindeza! Eu cuidava daquilo tudo com grande zelo como se fosse gente grande. E esperem que eu já vou contar a vocês a coisa do bulling, mas antes quero contar uma tontice que me deu na cabeça dizer a minha prima e que eu acho que não devia ter dito. Minha prima tem uma neta pequena. Eu aqui há dias fui a casa dela e como houvesse algumas ervitas no jardim, para não dizer “ervaço” eu sugeri que ela comprasse umas botas e umas luvas à menina e a pusesse a arrancar ervinhas. Eu penso que era uma boa atividade o contacto com a terra, as crianças, comprovadamente, precisam disso, de rituais, como lavar a cara todos os dias. Depois, se o trabalho da criança fosse valorizado, ela ia começar a gostar daquilo. Foi o que aconteceu comigo com aquela idade. Mas pela reação de espanto de minha prima, a minha sugestão foi uma ofensa. “Cá nada, pequena, eu vou apanhar, a menina não tem botas nem luvas.”

Voltando ao bulling, naquele tempo, como já atremaram, eu era muito assenhorada e tinha a minha casinha de bonecas arreitada e arranjadinha, cumprindo sempre rotinas diárias. Como num ritual, ao sábado, eu lavava as roupinhas das bonecas, arejava as caminhas, tal e qual como minha mãe e minhas tias faziam. Ora, minhas primas, a quem eu genuinamente amava e queria que me amassem também, faziam-me grandes partidas que eu não compreendia e chegava a pedir a Deus que lhes mostrasse o meu bom coração. Em vão! Cadelas! Chegavam à nossa casa e punham-se a me fazer maldades tão grandes. Eu sujeitava-me àquela tortura com o coração a sangrar por dentro. Gozavam das minhas sobrancelhas de asa de gaivota e do meu buçozinho teimoso, como o de Frida Kaho. Minha mãe dizia-me “não se faz caso”, mas era impossível não fazer caso.

Um dia, minhas primas pegaram nas roupinhas das minhas bonecas, que estavam a secar ao sol, depois de tão bem lavadinhas, e presas com a prisão da roupa maior do que elas, patinharam e bailaram por cima de tudo jogado e espalhado no chão do terreiro. Foi uma dor de alma. Elas riram muito e fugiram, eu “berrei”, termo usado por elas para relatarem o heroico feito, e mais riram de mim. “Olha ela a berrar”.

Apesar de todos estes horrores da infância, sempre fui muito próxima delas e sempre lhes quis bem, numa espécie de veneração inexplicável. Uma, sem a outra, era um anjo e eu conseguia enxergar a excelência que havia em cada uma delas.

Quem não sabe da minha verdadeira amizade por minhas primas?

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas.

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