Paz e covardia não combinam

Quando eu habitava a escola primária, mais robusto que a maioria dos colegas e munido de duríssimas botas ortopédicas, qualquer contrariedade ou frustração que me fosse infligida tinha como resposta, além de furiosas lágrimas (serviam de sistema de aviso), um vendaval de pontapés. Isto não podia ser, como é óbvio, pelo que os meus pais decidiram, quando estava a entrar na fase seguinte do ensino, pôr-me a praticar karaté. Imagino que muitos pensem logo que esta decisão foi pouco avisada, mas a verdade é que a arte marcial me deu várias lições..

Em primeiro lugar, aprendi que doía, que era possível que o outro a quem eu aplicava um golpe podia responder em espécie e magoar-me. Em segundo lugar, aprendi que podia causar danos no outro; o que não era, de todo, a minha intenção. Não é ideal para fazer amigos. Em terceiro lugar, aprendi a controlar-me física e mentalmente. No fundo e tudo somado, aprendi que a violência é muito mais útil quando a controlamos e dominamos. Sobretudo, é útil que o nosso potencial agressor saiba de antemão que somos capazes de nos defendermos com igual violência.

Mais tarde, ao entrar na adolescência e de férias com família, vi-me ameaçado e provocado a ceder à violência. O meu antagonista estaria de olho na bicicleta emprestada em que eu estava sentado, deduzo, já que não o conhecia de lado nenhum nem lhe tinha feito nada. Ele tinha uma escolta de dois outros rufias. Eu estava acompanhado de cerca de quatro amigos com ar inofensivo, já que nenhum deles tomou uma postura agressiva. O rufia que me estava a provocar, encostava-me a cabeça à testa, enquanto eu mantinha as mãos na bicicleta e os olhos nos olhos. Mantinha-me calmo deixando o nervosismo sair com movimentos rápidos da língua, batendo no interior da arcada dentária. A certa altura, o durão reparou neste movimento e enervou-se, achando que eu estava a gozar com ele. Deu-me uma cabeçada, a que respondi apenas com o reflexo de baixar a cabeça para que a cabeçada me atingisse no cimo da testa, em vez do nariz. O meu agressor ficou sem saber como prosseguir; eu endireitei-me, mostrando-me maior, e levei os braços ao peito, vagamente cruzados. Media-o e projectava a resposta caso houvesse nova agressão, quando um dos amigos dele se aproxima e lhe segreda algo ao ouvido. Olhou para mim, curioso e frustrado, deu meia-volta e afastou-se, sempre a dizer, sem levantar a voz, que eu tinha sorte, que me arrebentava todo, e coisas assim. Um dos meus companheiros, colega de escola daquele camarada que lhe soprou ao ouvido, puxara-o para o lado e avisara que eu estava a evitar começar a peleja porque praticava karaté, pelo que só podia agir em legítima defesa. Ficou o meu potencial contendor a saber que eu era capaz de mais violência do que ele antecipava, o que o fez pensar melhor na sua intenção.

Hoje, quando ouço dizer que a resposta ideal à agressão é a rendição para evitar a violência, tenho dificuldade em praticar o controlo que aprendi naqueles aninhos de karaté. Eu tendo confiar no indivíduo capaz de grande violência, mas que escolhe não a exercer, a não ser em legítima defesa. Pelo contrário, tendo a confiar pouco no indivíduo que se encolhe permanentemente para evitar o confronto — além de saber que não me defenderá da agressão de terceiros, também não sei a quem aponta para desviar a agressão.

O rufia conta com o desejo de paz a qualquer custo da sua vítima. Quando a vítima se recusa a sê-lo, e mostra-o, ser rufia pode ter um custo maior.

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