Os perigos do método científico

O postulante Muikinavahia vestiu a sua melhor camisa, que era vermelha com florezinhas azuis e colarinhos pontiagudos, e guardou no bolso das calças uma esferográfica e um caderninho. A manhã estava luminosa e ele seguiu pela estrada principal em direção ao centro da vila. Quando desceu a rua ao lado do cinema, o edifício pareceu-lhe muito mais alto do que comprido.

Não cabem aqui sequer cem pessoas, pensou e depois deslocou-se para a frente e reparou que a porta estava aberta e a bilheteira vazia. Então, avançou por ali adentro e desembocou na plateia. Ficou surpreendido com o mar de cadeiras submersas na penumbra e, por um instante, esteve prestes a aceitar que o recinto teria mesmo capacidade para seiscentas pessoas, como diziam os outros. Mas já o tinham avisado que os olhos enganam, a ponto de uma pessoa ver coisas que não existem ou então de ver coisas como gostava que elas fossem e não como são. Por isso, deve-se aplicar sempre o método científico.

Era o conselho que lhe dava o orientador de curso, um padre que falava como se não fosse padre e dizia coisas como sigo o raciocínio científico, mas sirvo-me da poesia para responder às questões eternas, o que, bem vistas as coisas, também obedece à lógica científica. A religião e a poesia derivam da mesma substância. A religião é formada a partir da adição de elementos aglutinadores e a poesia de elementos segregadores. Por isso, uma faz-nos cativo e a outra liberta-nos, sendo certo que ambas oferecem resposta às mesmas perguntas.

– Prefiro a poesia, mas às vezes sou profundamente religioso – dizia o padre.

– E para que serve a ciência? – Perguntava o postulante.

– Serve para nos ajudar a morrer melhor.

O postulante Muikinavahia tirou o caderninho e a esferográfica do bolso e iniciou as investigações. Primeiro, contou o número de cadeiras da última fila, do lado esquerdo, e tomou nota do número. Depois, avançou pelo corredor a contar o número de filas e anotou-o. Repetiu a operação com as cadeiras e as filas do lado direito. De repente, deu-se conta de que o número de cadeiras em cada fila não era igual. Na verdade, quase nenhuma fila tinha o mesmo número de cadeiras. Então, decidiu contá-las uma a uma.

A meio desta operação, quando se encontrava entre as cadeiras do lado esquerdo, o postulante Muikinavahia estremeceu com um grito horrível vindo lá de cima, do balcão. Olhou e viu um indiano de braços abertos.

– Está a fazer o quê? – Berrou o indiano.

O postulante Muikinavahia não se acanhou:

– Estou a contar as cadeiras. – Depois, como prova da verdade, exibiu o caderninho e a esferográfica.

– A contar as cadeiras! – Gritou o indiano. – Quem te mandou contar as cadeiras?

– Ninguém – disse o postulante Muikinavahia. – É só para eu saber quantas pessoas cabem aqui dentro sentadas.

O indiano fez uns movimentos muito rápidos, como nos filmes de karaté, e o postulante Muikinavahia até pensou que ele ia saltar lá de cima. Mas não. O indiano desapareceu do balcão e apareceu subitamente na plateia. Aproximou-se furioso e agarrou-o pelos colarinhos pontiagudos.

– Afinal, o que está você a fazer aqui?

O postulante Muikinavahia não teve outro remédio senão repetir a verdade:

– Estou a contar as cadeiras.

O indiano largou-o, abandonou a plateia e fechou a porta do corredor. O postulante Muikinavahia ouviu a chave dar duas voltas na fechadura e depois ouviu o som do ferrolho.

A sala afundou-se numa quase total escuridão. O postulante Muikinavahia sentiu um certo medo. Sentou-se numa cadeira e esteve a pensar durante uns dez minutos, mas assim que percebeu que o pensamento não o levava a lado nenhum, decidiu continuar a contar as cadeiras. Contou-as três vezes. Na primeira contagem, obteve o número 120. Na segunda, que era para confirmar, o resultado foi 125. Algo correu mal, pensou. E contou-as mais uma vez. O resultado agora foi 123.

O postulante Muikinavahia ficou perplexo. No caderninho constava uma série de contas erradas e nem sequer estavam ainda incluídos os assentos do balcão. Era, pois, necessário proceder a nova contagem, tarefa que pensava ser agora mais fácil, pois já tinha os olhos adaptados à escuridão.

Uma, duas, três…

(Continua… Certamente na próxima sexta-feira)

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