Religar-nos e cutucar a história

Compaixão e clemência foi o que a bispa episcopaliana de Washington, Mariann Edgar Budde, pediu ao mais recente presidente dos EUA, numa cerimónia inter-religiosa em que este esteve presente, um dia depois da sua tomada de posse. Lembrou o presidente de que há crianças homossexuais, lésbicas e transgénero que receiam pelas suas vidas, de que os trabalhadores braçais migrantes, que podem não ser cidadãos de pleno direito, nem ter a documentação adequada, não são, na sua grande maioria, criminosos. Aquela mulher, naquele púlpito, repôs, mesmo que fugazmente, o fiel da balança no seu justo ponto, e encarnou o que a religião deve prosseguir: religar-nos. Agora, está a sofrer as consequências, mas não a podemos deixar travar esta batalha sozinha. Até ao final do mandato, a nossa consciência será chamada à colação: avaliaremos o grau de pureza da nossa intervenção, ou falta dela. A ironia do destino, e do clima, quis que a tomada de posse deste presidente estado-unidense acontecesse no dia em que se celebrava Martin Luther King e no mesmo local desrespeitado pelos próprios apoiantes do primeiro, onde vandalizaram as instalações, o Estado de direito, feriram e mataram quem tinha a incumbência de os proteger. A lei e ordem, sim, mas só naquilo que, e em relação a quem, os aprouver.

Em 27 de janeiro, celebraram-se os 80 anos da libertação do campo de concentração e de extermínio nazi de Auschwitz-Birkenau. Uma das sobreviventes francesas, Ginette Kolinka, que em fevereiro celebrou o seu centésimo aniversário, legou-nos uma parte da sua memória viva do Holocausto: «sentir ódio é já pôr os pés em Auschwitz». Nos campos de concentração ouvia-se, por vezes: vocês entram pela porta – a mais famosa encimada pelos dizeres de que o trabalho liberta –, mas saem pela chaminé. Em Madagáscar, considera-se que quando alguém perece passa a fazer parte do universal e vela por nós: a nós, incumbe-nos ser guardiães desse universal. Isso passa também por estar atento ao que se passa no leste da República Democrática do Congo, não só mas também porque transportamos partes do Congo nos telefones que trazemos nos bolsos.

Ginette Kolinka poderia utilizar o mesmo título do filme brasileiro Ainda estou aqui. O realizador Walter Salles descreveu a película encabeçada por Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro, que aparece nas cenas finais, como uma obra «sobre a memória de uma família “durante a longa noite da ditadura militar no Brasil”». Lembrei-me de uma conversa que tive com uma amiga brasileira depois de ter estado presente numa sessão da Comissão Nacional da Verdade – criada em 2011 para esclarecer as graves violações de direitos humanos que ocorreram no Brasil, sobretudo durante a ditadura militar – na PUC do Rio de Janeiro. Trocámos umas impressões e ela disse-me que pensava que, depois de tanto tempo, não era preciso cutucar a história. Contudo, varrer para debaixo do tapete não é resolver, o que se veio depois a ver com o governo Bolsonaro: a apologia da ditadura e dos torcionários da mesma, o aviltamento da questão indígena, a mercantilização fulminante da Amazónia, e por aí fora. Vejam o filme, e ouçam a sua bonita banda sonora.

Leio que Kanye West, agora Ye, utiliza o seu ascendente sobre a sua esposa, Bianca Censori, arquiteta australiana que conheceu aquando da renovação da sua casa desenhada por Tadao Ando, para lhe impor o que lhe der na gana. Se dúvidas houvesse, veja-se o que aconteceu na passadeira vermelha dos Grammys 2025, em que, nos dizeres de Sabrina Champenois, Censori foi exposta como mulher-objeto, nua, obediente e de olhar vazio. O que diria a nossa imensa Maria Teresa Horta de tudo isto?

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