Um erro (ir)reversível

O cenário político da Madeira viveu mais um momento de incerteza constitucional e jurídica, com a publicação de dois diplomas no Diário da República a 27 de janeiro de 2025. Por um lado, o Decreto do Presidente da República n.º 18-A/2025, que dissolveu a Assembleia Legislativa da Madeira (ALRAM) e, por outro, a Lei Orgânica n.º 1-A/2025, que alterou a Lei Eleitoral da Madeira. Ambos foram publicados no mesmo dia, mas com efeitos temporais diferentes. Esse desfasamento gerou uma complexa questão jurídica que só poderia ser resolvida de forma adequada se as duas normas tivessem entrado em vigor simultaneamente.

Primeiro, é essencial perceber o que aconteceu no contexto legislativo. O Decreto do Presidente da República n.º 18-A/2025, publicado em 27/01/2025, procedeu à dissolução da ALRAM. O artigo 3º do decreto estabelece que “o presente decreto produz efeitos no dia da sua publicação”, ou seja, a dissolução da Assembleia tornou-se efetiva na própria data da sua publicação. De acordo com a Constituição Portuguesa, o Presidente da República está obrigado a convocar eleições no prazo de até 60 dias após a dissolução, sendo este um ato político com efeitos imediatos e irreversíveis.

Porém, ao mesmo tempo, foi publicada a Lei Orgânica n.º 1-A/2025, que alterou a Lei Eleitoral para a ALRAM. O seu artigo 6º estabelece que esta só entra em vigor no “dia seguinte ao da sua publicação”, ou seja, 28/01/2025. Esta diferença de datas colocou o processo eleitoral numa situação jurídica delicada.

Isto porque a nossa Constituição, no seu artigo 113º, n.º 6, estipula que, no ato de dissolução de um órgão legislativo, as eleições devem ser realizadas sob a legislação vigente à data da dissolução do órgão. Como o Decreto Presidencial produziu efeitos em 27/01/2025 e a nova Lei Eleitoral entrou em vigor apenas no dia a seguir, a aplicação das novas regras eleitorais à eleição de 23 de março de 2025 seria impossível. De facto, a dissolução da Assembleia cria uma situação jurídica irreversível. A extinção do mandato dos deputados e a convocação de novas eleições não podem ser revogadas ou alteradas de maneira simples. Assim, ao aplicar-se a Lei Eleitoral anterior, fica claro que qualquer tentativa de aplicar a nova lei, que só entrou em vigor no dia seguinte à dissolução, violaria o princípio constitucional de não retroatividade e a segurança jurídica.

Portanto, o normativo a ser seguido nas eleições de 23/03/2025 será, obrigatoriamente, a Lei Eleitoral anterior à alteração, sob pena de ser considerado juridicamente inexistente. Caso os órgãos competentes tentassem aplicar as novas normas, tornaria as eleições de 23 de março nulas.

Na Assembleia da República existia uma possível solução para corrigir esse desfasamento e garantir a aplicação da nova Lei Eleitoral. Passaria pela alteração do artigo 6º da Lei Orgânica n.º 1-A/2025, para determinar que a lei entraria em vigor no dia da sua publicação, alinhando assim as datas da dissolução e da entrada em vigor da nova legislação. O diploma seria “corrigido” na AR e a promoção de um decreto de retificação permitiria que a norma fosse efetivamente aplicada às eleições de 23 de março, sem comprometer a segurança jurídica do processo eleitoral. Mas tal solução obrigaria ao consenso entre os partidos na AR. O que não veio a suceder, já que o PS, aparentemente preocupado com a constitucionalidade de tal alteração e com possíveis questionamentos sobre a manipulação do processo eleitoral, bloqueou a solução. Embora a correção fosse juridicamente viável e tivesse o apoio de alguns setores da política, o PS argumentou que qualquer alteração à data de entrada em vigor poderia gerar um ambiente de insegurança jurídica e possíveis impugnações. Contudo, a recusa em corrigir o erro legislativo de forma clara e objetiva parece ter sido mais uma questão de falta de consenso político do que uma real preocupação com a legalidade, até porque impugnações podem existir por qualquer razão.

A verdade é que este imbróglio reflete aquilo que tem sido a postura de Marcelo Rebelo de Sousa para com a Madeira. Desde a “maçada” que foi receber os partidos regionais em Belém até ao indesculpável erro grosseiro na publicação das alterações à lei eleitoral e do decreto de dissolução da Assembleia, revelou falta de cuidado técnico (agravado pelo facto de que se trata de um dos maiores constitucionalistas do país) e sensibilidade (ainda insinuando responsabilidades ao primeiro-ministro!), refletindo um distanciamento em relação às particularidades da região. Esta falha não é apenas jurídica, mas também política, refletindo as dificuldades em encontrar consensos num sistema partidário polarizado, com um presidente que desvaloriza os seus conterrâneos ilhéus.

Assim, as eleições de março terão de ser realizadas com base na legislação anterior, e a oportunidade de aplicar já um novo sistema eleitoral foi perdida — um erro que se tornou irreversível.

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