Quem são os nossos?

O episódio da Rua do Benformoso, no Martim Moniz, choca para lá dos acontecimentos. Ainda esta semana, na Assembleia da República, o primeiro-ministro deste país de emigrantes, disse não ter gostado de ver pessoas encostadas à parede, mas confessou apoiar e compreender a ação da Polícia contra imigrantes no nosso país.

O líder do Chega, o tal que já não surpreende na infâmia que é capaz de praticar, admitiu que gosta de ver pessoas encostadas à parede quando estas assaltam, roubam ou agridem “os nossos”. Assim, sentença já feita, sem tribunal, sem provas, sem nada.

Confesso que os dois me chocaram em igual grau. Primeiro porque não gosto de ver pessoas encostadas à parede sem razão ou pelas razões erradas, e segundo porque não sei o que é isso de “os nossos”.

Quem são os nossos? Os da mesma cor? Os da mesma religião? Os do mesmo país?

Para mim, os nossos são um conceito amplo. Os nossos são a humanidade no geral, os nossos são a natureza, os nossos são os animais que partilham o planeta/casa comum. Os nossos somos todos nesta amálgama de diferença e de comunhão.

Só quem já de distanciou muito da sua natureza e da sua moral, pode erguer muros, pode encostar a muros os que considera serem os outros de nós, pode semear o ódio primário e básico, pode ser de uma humanidade amputada e deficiente.

Sim, trata-se de uma amputação, de uma deficiência, de uma falha moral, de uma infâmia profunda.

Deviam ter vergonha os que falam nos nossos e nos outros, mais não fosse porque, nessa lógica retorcida, fomos e ainda somos os outros em tantos lugares. Nessa lógica retorcida, fomos e ainda somos os que tiraram empregos aos naturais de outros países, fomos e ainda somos os que são mais escuros, os que falam uma outra língua, os que são os outros de outros nossos.

Tudo isto é muito triste, tudo isto é lamentável, tudo isto é de uma pobreza de espírito sem medida.

Posso dizer que esta semana aquele deputado e aquele primeiro-ministro não foram os meus, não porque nos separe raça, cor, país, língua, e, muito provavelmente, credo, mas apenas porque não comungo da infâmia, não comungo da segregação, não comungo da amnésia histórica, não comungo da amoralidade do presente.

E quem não se indigna a tempo, pode descobrir, mais tarde, que já não tem tempo para se indignar. As paredes que se erguem, as paredes onde se encostam os outros, tendem a agigantar-se a e a se encostarem a nós.

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