Mas que mesa farta! Uma pessoa até fica alcançada com tanta fartura de comer; com tanto presente para dar e receber; com tanta oferta para ir trocar às lojas na 1ª oitava, que parece que o mundo vai acabar com tanta gente para cá e para lá.
Ainda bem que há criaturas que se encantam e que vivem em euforia estes dias do Natal. Ainda bem que de manhã cedo, nas ruas junto às igrejas, na hora das missas do parto, não se consegue circular com tantos carros mal parados e há gente pela rua tão feliz e contente a cantar, a rir, a beber e a comer. Eu cá sou cada vez mais bicho do buraco. Já não me fascino com barulhos, nem com fogo que se rebenta e se suja a terra, o ar e a água e se assustam os animais. Estou ficando como a tia Elvira que queria sossego e gozar da sua casinha, olhando para tudo, varrendo e limpando com mil vagares, e zelando pelas suas flores. Um caquinho de sapatinho que abrira tão airoso era o pretexto para guarnecer com singeleza um pratinho em cima do frigorífico e já estava o arranjo feito. Também as latas de folha, desencantadas não sei onde nem há que séculos, forradas com papel de oferta para esconder a ferrugem, eram, pela substância e pelo cheiro a mel e a canela, o Natal da minha infância. Pouco mais era preciso. Nada de cisqueirada dentro de casa, que isso só dava trabalho e Deus, Nosso Senhor, não era servido dessas coisas. O calor da família, as limpezas, os cheiros e as histórias do tio José em casa da avó do Palheiro Ferreiro enchiam a alma e era o bastante. Na casa da senhora Maria José de Umbelina, a minha contadora de histórias, no quarto do meio, havia, em cima do lava-mãos, um presépio de escadinha, com a lamparina acesa, que era também o meu Natal, como o era, na nossa casa, a mesa da cozinha com a toalha de azevinhos e a jarra com cedro e junquilhos, mais os dizeres de minha mãe sobre a pobreza e a bondade do Menino Jesus que não queria vaidades. Ainda oiço, na igreja Nova, a voz cantada do senhor padre Sá que era, na Noite de Natal, a autêntica vivência desse tempo de paz por toda a terra.
Neste Natal, os mais ausentes foram, pois, os mais presentes. Deve ser da idade! No último dia do ano, chegaram tantos carros atrás da minha casa durante a tarde para guardarem lugar. Deitaram a cabeça para a minha casa e perguntaram coisas. Eu disse-lhes que todos os meus primeiros do ano são a juntar lixo do meu jardim, copos e pratos de plástico e etc. Este ano, prometeram-me frescura e licor da Camacha. Mentira, mas graças a Deus, deixaram-me notas de 500euros aos montões. Que mesa farta! Pena é que eram daquelas de brincar! Isto é que é gozar à fartazana com a cara de uma pessoa!
O melhor de tudo aconteceu no dia de Reis. Meu primo Victor telefonou-me, que me tinha enviado um vídeo de 1995 para o WhatsApp, que eu o visse, que tinha sido o filho dele que tinha passado duma cassete antiga não sei para onde. Pois sim. Fui ver! Engadanhei-me, mas lá consegui abrir. Era um filme de meu pai a fazer o vinho no nosso lagar que já não existe. Que melhor presente podia eu lá receber! Meu pai, ali, com o seu chapéu à “cowboy”, feliz como uma criança, a dizer que tinha o chapéu, mas que o cavalo lhe tinha fugido. Quem filmava era meu primo David, da Venezuela, que queria levar daqui para lá mil lembranças para o futuro. Entre as alfaias, havia um cesto de vimes, feito pelo tio Quintal, que me trouxe à memória a tia Eugeninha e a sua sempre doçura. E como se sabe, lá estava também a arisca da tia Elvira a meter o bedelho e a perguntar vezes sem conta se meu primo David não queria arranjar uma rapariga da Madeira para se casar, que era o melhor que ele podia fazer.
Eu, com esta relíquia e mais outras histórias que meu primo recordou, enchi o meu coração de tudo o que me faz falta. Foi o meu tesouro na mesa farta deste Natal!
Obrigada, primo! Estimei.
Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas.