O sôr Rui

O sôr Rui era, na verdade, o mestre Rui, que eu conheci depois do nosso regresso da América. Chegados à nossa casinha, eu matei saudades de tanta coisa que nem imaginava que um dia me pudesse fazer falta: a levadinha que corria cheia de pressa no nosso terreiro entre flores e ervas, o telheiro cheio de cacos inúteis e o Marquês, o cão, já meio velhote, que nascera na mesma semana do que eu e que meu pai trouxera da Travessa da Choupana para casa como presente para minha mãe. “Mais um para eu cuidar” – dissera minha mãe, enquanto me embalava e meu pai sorriu, embevecido com o quadro. Pelo sítio de São João de Latrão, também havia gente nova que eu nunca tinha visto antes: na casa da senhora Olívia, brincavam duas meninas e o meu coração deu um pulo com tamanha alegria, seriam certamente amigas para a vida; na casa da senhora Maria coisita, vivia agora o tal senhor Rui, a mulher, e uns poucos de filhos pequenos. O senhor Rui era um homem jovem, nem sei se teria 30 anos, muito alto e muito magro, sempre muito aprumadinho, fresco e asseado, os olhos escuros, pestanudos e sorridentes, o bigode farto. Era mestre na Toyota, e claro, tinha um Toyota bem espaçoso, que ele dizia que também comia à mesa com a família. Toda a gente gostava do mestre Rui, um homem bem falado e amigo de todos. Quando me lembro das manhãs do dia de Natal na nossa casa, está lá o mestre Rui jovem com a sua máquina fotográfica instantânea, a oferecer a meu pai o registo daqueles momentos maravilhosos, onde havia petiscos variados e vinho. Foi ele que deu a receita da pomada “Quadriderme” e que muito serviu para me curar uma “impinja” do tempo do frio da América que me alastrava à roda da boca. O senhor Rui dizia que não gostava de vinho, mas bebia até fartar para acompanhar os outros comparsas na ramboia. Foi para casa do senhor Rui que eu corri a pedir auxílio, quando meu pai foi à procura de água para encher o poço e caiu na levada dos tornos. O resultado foi que se pisou muito numa cana vieira e chegou a casa com a cara lavada em sangue, o beiço lascado. Teimoso, não queria ir para o hospital, e o senhor Rui, que não tratava meu pai por “tu”, mas por “si”, convenceu-o: “Guilherme, o Guilherme vai mais eu no meu Toyota e volta novo.” Depois, virou-se para as mulheres da casa e disse à boca pequena: “Homens antigos são lixados”.

A verdade é que dentro de casa, o senhor Rui é que era mesmo lixado: batia na mulher e os filhos viviam amedrontados; divertia-se às escondidas com outras e fazia a vida da família num inferno. Como é possível um homem ser tão bom e tão mau? Isto merece um estudo profundo e um doutor Saturnino. Quando os filhos do senhor Rui cresceram, emigraram e chamaram a mãe e a irmã pequenita para junto deles, tudo em segredo que ninguém soube de nada. Sozinho, o mestre Rui não sabia nada. Perguntou como se fazia arroz e, na cozinha, considerou que tinha sido enganado na receita e fez ao contrário, três chávenas de arroz para uma de água e pôs-se na sorna, enquanto o fogão trabalhava. O produto final foi a cozinha a arder e os bombeiros chamados. Depois, o mestre Rui trouxe a Ororita para sua companhia. Saíam de casa os dois, o copo e a garrafa, ambos vestidos de igual, em perfeita harmonia, jogadores da mesma equipa. De regresso, despiam o fardamento e agora com a roupa de andar por casa, jogavam à porrada, no terreiro, e era ouvir a vizinha da frente dizer: “Aquilo é que é um duelo acolá-lém!”

Tanto andou, tanto fez, que Ororita foi-se embora e o mestre Rui, enxurrado de vinho, e passado dos carretos, aprendeu a dormir grandes sonecas dentro do carro. Assim acabou o grande mestre Rui da Toyota, bêbado, sentado ao volante do seu insignificante Micra, o sol a dar a dar…

Cuidado! É este o fim de tantos por aí iguais a ele…

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas.

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