Se uma astróloga me definisse a partir do meu nascimento, diria que nasci em Portugal Continental, mas com “ascendente na Madeira”. Há lugares que o corpo vai de férias, e depois há a Madeira, onde até a alma tira uns dias. Já fui duas vezes e sinto que não foi suficiente. A Madeira é daquelas geografias que nos apanham de surpresa: primeiro achamos que vamos só visitar uma ilha bonita, com flores, montanhas e mar, e depois damos por nós a abrir o Google Maps a ver terrenos baratos em Santana. Sim, já está na minha Wish List: ter uma casa de férias na Madeira. Uma daquelas com vista para o verde vertical e o azul absoluto. Uma daquelas onde se acorda com a sensação de que o mundo, afinal, ainda tem lugares onde é possível respirar sem pagar em ansiedade.
Foi na Madeira que me apaixonei pelos trilhos. Uma paixão inesperada, como quase todas as que valem a pena. Quem me visse antes, hesitante com as sapatilhas, os bastões de caminhada e a garrafa de água, não adivinharia que me tornaria devoto das levadas e das veredas, como se tivesse encontrado a religião certa depois de anos de agnosticismo de caminhada. Lembro-me, por exemplo, da Vereda da Ponta de São Lourenço. Cenário de um filme épico, com falésias que parecem arranhões feitos no mar. No fim, a Casa do Sardinha. E ali, nesse instante quase bíblico, bebi qualquer coisa fresca, talvez um sumo, talvez a própria salvação, que soube a elixir da vida às portas da morte. A minha cara, molhada não se sabe bem se de suor ou de lágrimas de cansaço, encontrou a redenção naquele copo. Confesso que, por um momento, vi Deus…e estava de chapéu de palha, a servir bebidas.
Mas nada me marcou tanto como o Fanal. Pedi aos deuses dos trilhos (sim, porque há deuses específicos para isso) que me dessem nevoeiro. Que me dessem chuva. Queria drama atmosférico. Queria caminhar por entre árvores que parecessem fantasmas e lama que nos sussurrasse os pés. E eles ouviram. O Fanal recebeu-nos com um manto cerrado de bruma e uma chuvinha persistente que parecia saída de uma encenação teatral de um romance russo. Foi perfeito. Senti que estava a criar uma daquelas core memories, daquelas que ficam arquivadas num canto da mente com etiquetas douradas: “guardar para sempre”.
E depois há o capítulo sagrado da poncha. Estar na Serra d´Água à procura do melhor sítio, entre a crista do galo e aquelas escarpas, para a provar é quase uma peregrinação. A missão é séria: escolher com critério, resistir ao impulso de parar logo no primeiro tasco. E depois, claro, fazer tempo. Tempo não para descansar, mas para que o álcool evapore discretamente pelos poros do corpo antes de voltar à estrada. Noutro dia depois da viagem de regresso no teleférico, descobri a verdadeira Brisa: não a que vem do Atlântico, essa já conhecia. Falo da que borbulha na garrafa, com sabor a ananás, maracujá ou qualquer outro fruto desde que fresquinha.
Na Madeira, em quatro horas conseguimos atravessar o tempo. O cronológico e o metrológico. Saímos com sol, passamos por chuva, nevoeiro, vento e arco-íris, tudo num intervalo que faria inveja ao National Geographic. É como viver dentro de uma timeline baralhada, onde as estações se revezam por capricho e não por calendário. E entre curvas e contracurvas, perguntamos duas vezes se devemos mesmo subir aquelas ruas com inclinações que desafiam as leis da física…e pedimos silenciosamente ao Universo que o travão de mão do carro que alugamos, que por sinal não tem potência suficiente, esteja afinado. Porque sim, há fé envolvida, mas também há gravidade.
A Madeira não é só bonita, a Madeira move, move dentro. Tem qualquer coisa de ancestral no cheiro das florestas e de futurista na delicadeza dos detalhes. A simpatia que não soa a obrigação, a bolo do caco com manteiga de alho servido com convicção, o mar que nos lembra que não somos assim tão importantes, mas que ainda assim merecemos beleza. É por isso que anseio voltar. Ir à Madeira é como reencontrar uma parte de nós que vive mais devagar, mais inteiro, mais atento. E quando damos por nós, já não é só um destino. É uma ideia do futuro. Um sítio onde a vida não se corre, caminha-se de preferência com mochila às costas, nevoeiro nos olhos, e um copo gelado à espera no fim do trilho.