Li recentemente um conto de Flannery O’Connor, no qual umas das personagens faz a seguinte declaração, seguida de uma pergunta: “as pessoas já nem se importam com a qualidade das suas mentiras. Talvez o melhor que eu posso dizer-lhe seja: sou um homem; mas escute, minha senhora, o que é um homem?” A pergunta lançada fica sem resposta, mas o fim do conto revela o pior do homem que se afirmou como homem e que apresentou essa circunstância como a derradeira verdade, mas também como o enigma que cada homem carrega.
Um homem é sempre uma amálgama de possibilidades, mas, no fim, serão sempre os seus atos a falarem e a desvendarem a sua verdadeira natureza.
Vem isto a propósito do caso de violência doméstica que, na última semana, e à conta de um vídeo, tornou o horror vivido por muitas mulheres visível. O vídeo que deu rosto ao flagelo. Deu, aliás, vários rostos: o do agressor, o da mulher agredida, o da criança desesperada e que, do fundo dos seus nove anos, teve a coragem de se interpor entre a mãe o seu agressor, entre a sua mãe e o seu pai. Nenhuma criança devia ser obrigada a isto. Nenhuma!
A crueza das imagens não deixa ninguém indiferente. Os gritos da criança ecoam em nós muito para lá das imagens. Ficamos presos e incrédulos com a normalidade com que o agressor bate à porta, arruma o cabelo, e depois desses gestos quotidianos, faz o mais infame ataque a uma mulher indefesa, na presença de uma criança, seu filho. A forma como mesmo estando a vítima já no chão, mesmo perante os gritos de uma criança, continua a bater violentamente.
A reação geral foi quase unânime no sentido de uma condenação, mas, ainda assim, há quem queira normalizar o mal, quem procure relativizar, atenuar com razões para a agressão, como se as houvesse. Não, não há. Nada atenua a violência, nada a legitima, nada a relativiza, nada a explica ou torna menos infame e imoral.
Não servem de atenuantes o passado do homem, a suposta simpatia do homem, o machismo militante que quer fazer das mulheres posse, propriedade, coisa à qual se pode impor, pela força, uma qualquer lei de macho ofendido com razões ou sem razões para isso.
Volto ao início deste texto e à pergunta sem resposta: o que é um homem? Um homem pode ser muitas coisas, mas é sobretudo os seus atos, e ainda é mais os seus atos quando estes são infames, quando estes são violentamente dirigidos a vítimas sem capacidade para se defenderem da força bruta e do ataque cobarde na calada da madrugada. Um homem pode ser muitas coisas. Mas um homem não pode, nem deve ser aquilo que vimos!