Ordem Mundial em Transição: De Vestefália a Kiev

Recentemente li a Ordem Mundial de Henry Kissinger. Nesse estudo, o ex-secretário de Estado dos EUA explora a história das relações internacionais, tomando o sistema de Vestefália (1648) como o ponto de partida para a ordem internacional moderna, baseado na soberania dos Estados e no equilíbrio de poder.

O autor recorda-nos que “a ordem internacional assenta num conceito de legitimidade aceite por todas as grandes potências do sistema”. Quando essa legitimidade é posta em causa, a instabilidade alastra-se e hoje é precisamente esse o cenário em que vivemos. Os tratados nascidos em Vestefália que estabeleceram a soberania estatal, a não-intervenção e o reconhecimento mútuo parecem, em 2025, esgotados A soberania, outrora intocável, tornou-se permeável. O que hoje se observa, da Ucrânia à Palestina, de Taiwan ao Irão, não são apenas violações das regras vestefalianas, mas sim tentativas de as reescrever.

A invasão da Ucrânia pela Rússia constitui uma afronta directa ao princípio vestefaliano da integridade territorial. Kissinger, ainda antes do conflito, alertava para a fragilização do equilíbrio europeu sempre que uma potência tenta “impor um padrão único de legitimidade”. A narrativa russa, que nega a soberania plena da Ucrânia, evoca os tempos anteriores a Vestefália, em que era a força a determinar as fronteiras e em que um Estado se sentia legitimado a impor a suas políticas, desejos ou projetos a outro Estado soberano.

A crise entre Israel e o Irão, representa uma ameaça ainda maior. De um lado, temos Israel que se defende de ataques lançados a partir de território iraniano ou por grupos apoiados por Teerão, como o Hezbollah ou o Hamas; do outro, o Irão, que se vê como vítima de agressão à luz do direito internacional. É possível que ambas as visões estejam corretas, mas a verdade é que o Irão se constitui como uma ameaça existencial a Israel – “Israel deve ser riscado do mapa” -, o que legitima as intervenções do estado judaico, que age em defesa da sua autodeterminação e do seu direito à existência. Kissinger adverte que “uma ordem internacional só sobrevive se for aceite pelos seus principais atores” e, neste caso, o sistema existente nunca foi aceite plenamente por Teerão. E a República Islâmica, tal como estruturada em 1979, é mesmo um estado-pária da ordem mundial uma vez que se opõe de forma sistemática a vários aspetos centrais do modo de vida ocidental, no plano ideológico, cultural e político. Esta oposição é fundacional e está presente nos discursos dos líderes, nos documentos ideológicos do regime e na sua política externa.

O conflito israelo-palestiniano expõe outra fratura: a do reconhecimento internacional. A Palestina reivindica estatuto de Estado, mas não controla integralmente o seu território nem goza de reconhecimento unânime. Kissinger nota que o Médio Oriente moderno nunca consolidou “um sistema legítimo e mutuamente reconhecido de Estados”, o que perpetua o impasse.

Taiwan padece do mesmo problema uma vez que nos deparamos com um governo democrático e eficaz, mas sem reconhecimento diplomático formal da maioria das nações. A soberania está suspensa, o que é um paradoxo vestefaliano. O sistema exige fronteiras, autoridade e reconhecimento e Taiwan possui os dois primeiros, mas falta-lhe o terceiro.

Estamos, pois, perante o limite estrutural da ordem vestefaliana. Esta garantiu estabilidade durante séculos, mas não foi desenhada para lidar com um mundo hiperconectado e assimétrico.

As grandes potências já não partilham uma visão comum sobre o que é legítimo. A China, os Estados Unidos, a Rússia, a União Europeia e outras entidades regionais actuam com base em visões divergentes de soberania, intervenção e valores. A governação global fragmentou-se. Kissinger escreveu que “a ordem mundial não é um estado natural. É uma conquista.” É verdade e essa conquista está hoje em risco. Preservá-la exige coragem política, memória histórica e vontade de renovar os princípios que unem o sistema internacional antes que sejam os factos consumados e as armas a defini-lo novamente. Os contactos estabelecidos entre Trump e Putin podem ser tomados como um sinal de esperança. Tal como a consequente cimeira na Casa da Branca. Veremos se consegue passar das palavras apos atos. Seria excelente para uma nova ordem mundial, que a permitisse regressar aos limites vestefalianos. Afinal, estamos mesmo a precisar de boas notícias!

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