Carta para um leitor faminto

Escrevo-te neste agosto que me encontrou no Norte, com os dias longos e uma luz que parece pintada à mão. Em Herlev, na Dinamarca, a brisa traz um cheiro quase invisível de pão de centeio acabado de cortar. Sento-me numa esplanada junto a casas que parecem de bonecas, e o mundo move-se devagar: bicicletas que deslizam como se não tivessem peso, vozes que se perdem nas páginas que leio, gaivotas que gargalham à vontade.

No prato, tenho uma salada morna de batata nova, endro fresco e pepino, regada com azeite. É um prato simples, mas com o cuidado de quem conhece a doçura da estação. Enquanto almoço, acompanha-me “A filha da louca”, de Maria Francisca Gama.

A voz da narradora mistura-se com o burburinho da rua, e percebo que há livros que não nos deixam intactos; tal como certas vilas. Sinto que, à semelhança da relação de Matilde e Clara, este país é feito de pequenas confidências: o tilintar das chávenas à hora do lanche, a alegria das casas coloridas, a paciência com que o tempo é gasto. Aqui, como no livro, há beleza na rotina e flores na rua e uma espécie de delicadeza sagrada em cada pessoa.

Daqui a uns dias, estarei no Porto Santo. Já imagino o desembarque. O calor a envolver-me como um lençol morno, o cheiro salgado que não precisa de ser procurado, a areia fina que se cola aos pés com a insistência de uma memória antiga.

Sei que vou sentar-me numa esplanada voltada para o mar e pedir uma cerveja acompanhada por tremoços. Eu, um lugar à sombra, o barulho lento das ondas e o escolhido da altura: “Como animais”, de Violaine Bérot. Já imagino as palavras da autora francesa a misturarem-se com o vento e a água, formando uma segunda respiração. Quero que cada página se abra como se fosse uma porta para outra ilha. Agosto, ali, será o contrário da Dinamarca: não será feito de ordem, mas de dispersão; não de silêncio, mas de murmúrio.

Depois, Lisboa. Um salto breve, mas marcado pelo calendário e pelo coração. Um aniversário importante, desses que merecem ser celebrados não pelo número, mas pelo que nele se acumula: os gestos partilhados, as chegadas e partidas, as histórias que partilhámos e as que ainda construiremos juntos. Imagino a cidade a vestir-se de luz nesse dia, como se soubesse que também é parte da festa. Para a viagem de avião, um livro de Leila Slimani.

Talvez “O País dos Outros”, talvez “Levarei o fogo comigo”, não sei, qualquer coisa escrita por ela será certamente brilhante.

E, assim que voltar, cozinharei setembro para ti.

Guarda-me um lugar à tua mesa e, se puderes, uma prateleira livre. Terei estórias para contar.

Com fome de tudo

V.

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