“Mas sentes-te mais madeirense ou mais portuguesa?”
Já ouvi esta pergunta tantas vezes que perdi a conta. Em jantares com amigos de outros países, em conversas descontraídas com portugueses do continente ou simplesmente quando alguém tenta identificar o sotaque. À primeira vista, parece inofensiva. Mas há ali uma ideia escondida: a de que temos de escolher. Como se fosse possível dividir o que sentimos em percentagens ou pôr rótulos numa coisa tão íntima como a identidade.
Mais recentemente, foi um amigo da Irlanda do Norte quem me fez essa pergunta. Também ele vindo de uma ilha, lançou-a com curiosidade genuína, quase como quem procura uma afinidade. Contou-me que, onde ele cresceu, é comum viver-se com uma identidade dupla ou até ambígua: ser irlandês, mas também britânico. E que, muitas vezes, isso gera confusão… por parte dos outros, mas também dentro de si próprios.
E nesse momento voltei a sentir: esta dúvida que muitos têm sobre quem somos, para mim, nunca foi uma escolha. Sempre foi uma convivência.
Eu sou madeirense. Nasci rodeada de mar. Cresci numa ilha pequena, mas com uma identidade enorme. Feita de sabores, de festas, de fruta na mesa, de maracujá na sobremesa e de um orgulho silencioso que não se grita, mas sente-se.
A nossa forma de ser é direta, calorosa, às vezes bruta, mas sempre genuína. Temos palavras que mais ninguém usa e que dizem mais sobre mim do que qualquer bilhete de identidade. Temos o nosso hino. Temos expressões que só fazem sentido ditas no nosso sotaque. Temos especificidades que quem não é ilhéu não pode perceber.
E sim, sou portuguesa. Tenho o passaporte, o idioma, a cultura. Vivi no continente. Fui feliz em Lisboa. Mas nem sempre me senti representada. Nem sempre senti que a Madeira fazia parte da forma como se fala de “Portugal”. Muitas vezes, parecemos uma nota de rodapé… Um lugar com bom clima e paisagens bonitas, perfeito para férias, mas quase sempre fora da conversa quando se fala do país a sério.
Talvez por isso nunca perca uma oportunidade de falar da Madeira. Se estou numa reunião em Bruxelas, conto de onde venho. Se alguém nunca ouviu falar de poncha, explico com entusiasmo. Se ouço alguém falar de Portugal como se fosse só Lisboa, Porto e Algarve, lembro que o país vai muito além do continente.
Não é teimosia. É necessidade. E também é amor.
E mesmo entre ilhéus, há diferenças. Lembro-me de uma conversa com uma amiga e um colega do Porto Santo, em Lisboa. Ela disse, com toda a naturalidade, ao apresentar-nos a outras pessoas: “A Patrícia e o João são madeirenses.” Ele respondeu logo, sem hesitar, com um sorriso: “Eu sou porto-santense.”
E eu percebi ali, mais uma vez, que a identidade não é uma só. Nem dentro da mesma ilha, nem dentro do mesmo arquipélago. Cada um leva o seu lugar ao peito à sua maneira. E está tudo certo.
Não sinto que tenha de escolher entre sentir-me mais madeirense ou mais portuguesa. Sou as duas coisas. Ao mesmo tempo. Sem conflito. Sem necessidade de hierarquia.
A minha forma de estar no mundo é feita dessa mistura. De ilha e de país. De margem e de centro. De mar e de continente. Ser feita de dois lugares não me divide. Amplia-me.
E é por isso que, sempre que me perguntam “sentes-te mais madeirense ou mais portuguesa?”, sorrio. E penso: se calhar o problema não está na resposta. Está em continuarmos a achar que temos de escolher.