Retrocessos

Não costumo usar esta coluna para debater a atualidade, principalmente por falta de paciência para aquilo em que o espaço público de debate se transformou com as redes sociais, essa espécie de esgoto a céu aberto onde, nestes tempos estranhos, tudo vai desaguar.

Mas há alturas em que o silêncio deixa de ser uma opção, e a palavra passa a ser uma necessidade. É neste contexto que me tenho recordado diariamente do poema de Bertold Brecht, aquele que fala de alguém que não se importou quando levaram os negros, os operários, os miseráveis, os desempregados, porque não pertencia a nenhum desses grupos; e, quando finalmente o levaram a ele, ninguém se importou, porque ele também não se tinha importado com ninguém.

Quando vejo um país adormecido perante a infâmia que se agiganta contra migrantes; quando vejo um país metade ignorando e metade a aplaudindo retrocessos na educação, como a extinção da disciplina para a sexualidade, ou a aberração que é a extinção da Fundação para a Ciência e a Tecnologia; quando vejo um mundo em silêncio perante os vários genocídios que se estão a fazer à vista de todos e em direto, penso que se pactuarmos com tudo isto, talvez o nosso fim seja o fim do poema de Brecht. Um fim sem honra, nem glória e sem ninguém que nos acuda, mergulhado no silêncio ou no aplauso que permitiu que ninguém ficasse a salvo da indigência moral e humana e dos seus horrores.

Que haja um grupo de infelizes que descobriram no discurso do ódio e no primarismo egoísta a sua forma de ganhar a vida e de ter protagonismo, é uma coisa; que se revele um país que se revê cada vez mais nesse discurso miserável é algo que nos deve colocar a todos em alerta. Um alerta vermelho, cada vez mais audível, cada vez mais próximo, cada vez menos sinuoso, cada vez mais direto e claro e, ainda assim, cada vez mais permitido como coisa possível e banal. Esta banalidade do mal que nos traz de volta a atualidade de Hanna Arendt, e que se refere precisamente à capacidade de pessoas comuns, quando inseridas em certos contextos institucionais que normalizam o mal, o aceitarem e até o praticarem. A expressão foi cunhada durante o julgamento de Adolf Eichman, oficial nazi, e lembra-nos da ineficácia dos ensinamentos da História que fazem com que ela, a História, se repita apesar do horror passado, apesar dos exemplos, apesar de tudo, apesar de sabermos muito bem os caminhos da infâmia e de todas as suas inevitabilidades.

Assim, o silêncio ignorante ou confortável, o apoio tácito ou ativo a retrocessos que todos estamos a ver; a aceitação de que os nossos problemas estão nos migrantes, na educação, na democracia, só nos leva a um futuro/presente cada vez mais assustador nos seus métodos e nos seus fins. O tempo que nos foi dado a viver não se compadece de silêncios e muito menos de omissões.

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