Mais que um ferry

O tema “ferry” voltou à discussão pública recentemente e o cenário aqueceu após a passagem pela Madeira do candidato presidencial Gouveia e Melo, que declarou que “discorda de um ferry para a Madeira” por questões de razoabilidade económica. As reações, de alguns quadrantes, foram, como não seria de esperar, demolidoras. Em cima da mesa estão ponderações económicas e políticas. Vejamos então as primeiras.

Entre 2008 e 2012 a Naviera Armas operou a ligação Funchal–Portimão com o ferry “Volcán de Tijarafe”. Transportou cerca de 146 mil passageiros e 155 mil toneladas de carga rodada em quatro anos, o que equivale a uma média anual de 36 mil passageiros e 38 mil toneladas. Apesar de parecer expressivo, o fluxo era baixo para as necessidades financeiras de um ferry RO-PAX deste porte, projetado para 1.200 passageiros e cerca de 100 camiões por viagem. Sem escala económica robusta, a operação tornou-se frágil e acabou suspensa em janeiro de 2012, sobretudo devido ao aumento dos custos de combustível e portuários, que tornaram impossível garantir equilíbrio financeiro.

Volvidos alguns anos, em 2018, o Governo Regional lançou novo concurso para retomar a linha, resultando numa operação sazonal (3 meses), outra vez com a Naviera Armas. Entre 2018 e 2019, foram transportados cerca de 14 mil passageiros por ano e aproximadamente 1.200 trailers, gerando receitas na ordem dos 4,2 milhões de euros. Mas os custos operacionais rondaram os 6,4 milhões, provocando um prejuízo direto de 2,2 milhões só nesse curto período. Se fosse uma operação contínua ao longo de 12 meses, projetando os mesmos padrões, o défice anual teria facilmente chegado a 10 milhões de euros.

Estes números dizem tudo: olhando apenas para racionalidade económica e números puros, o ferry será sempre uma má aposta. Por natureza, e pela escala diminuta da realidade madeirense, a operação será cronicamente deficitária. Mesmo duplicando ligações por semana, mantendo o nível atual de passageiros e carga, o subsídio necessário rondaria os 18 a 20 milhões de euros anuais (e este valor é apenas uma estimativa). Para que fosse autossustentável, sem qualquer apoio público, a linha precisaria de pelo menos 150 mil passageiros e mais de 20 mil trailers por ano — algo absolutamente irrealista.

Mas o problema não termina no custo direto. A entrada sem controlo de veículos particulares aumentaria a pegada automóvel na ilha, pressionando ainda mais as estradas regionais e o já sensível trânsito, com prejuízo para o ambiente e para o orçamento público que terá de reforçar a manutenção viária. Do mesmo modo, abrir-se-ia a porta à importação massiva de frescos e hortícolas continentais, esmagando a pequena agricultura madeirense, que vive num mercado protegido e sem escala para concorrer em preço com produções extensivas do Alentejo ou Ribatejo. Estes são apenas exemplos claros das falências potenciais que o ferry poderia trazer à Madeira.

De facto, olhando friamente para os números e o impacto económico real, percebe-se que não justifica, por si só, o enorme esforço orçamental que exige. Então, se é assim tão ruinoso, porque faz sentido insistir no ferry? Porque que se exige ao decisor político ir contra toda a racionalidade económica? Porque a questão não é, nem nunca foi, apenas económica. É política, identitária e nacional.

Um ferry representa uma alternativa, ainda que mais demorada e condicionada, aos meios aéreos. É um símbolo de ligação ao território continental, da continuidade territorial que a Constituição consagra, e do direito elementar de sermos portugueses com acesso direto ao restante território nacional — mesmo que isso custe ao Estado.

Não se trata apenas de “business plans”, mas de justiça territorial, solidariedade nacional e coesão entre centro e periferia. Veja-se o caso dos Açores, com ligações inter-ilhas integralmente deficitárias, suportadas pela Região e pela República, sem que isso escandalize ninguém, em nome da continuidade territorial e do princípio constitucional da igualdade entre portugueses.

Por isso, o ferry é mais do que um transporte. É um símbolo maior do abandono a que a Madeira tantas vezes é votada nas questões que realmente importam: na revisão dos poderes autonómicos, nas finanças regionais, nos custos da insularidade que continuam sem compensação integral. É nesta teia de desatenção crónica do Estado que se compreende a insistência madeirense num ferry, nem que seja apenas para provar que o país ainda nos vê como parte dele.

Em suma, o ferry Madeira–Continente será sempre uma expressão de pertença e de direito à mobilidade, mais do que uma solução racional aos olhos de um contabilista. Para muitos, essa bandeira basta para justificar o investimento público. Para outros, continuará a ser um luxo pago por todos, disfarçado de necessidade. No final, caberá à sociedade madeirense (e ao país) decidir o que pesa mais na balança: se as contas, se o sentimento de nação.

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