Enquanto estávamos entretidos com outras coisas, acabou-se o dinheiro para comprar ou arrendar casa. Tal como se acabaram as casas para comprar ou arrendar a preços condizentes com os ordenados da esmagadora maioria dos madeirenses.
E agora?
Agora, há uma geração inteira, outra vez, condenada à casa dos pais. A dividir a sala. A partilhar a cozinha. A viver sem privacidade.
Este é o retrato. É a realidade. É o momento em que estamos.
E é neste tempo que se impõe uma pergunta: como é que chegamos até aqui?
Haverá certamente muitas respostas. Mas talvez se deva considerar o caso de este retrato ser essencialmente o resultado de uma distração. De uma grande distração coletiva.
A verdade é que depois da luta para retirar pessoas das furnas e das zonas altas do Funchal, pouco mais se falou do assunto. Até dava a ideia de que o problema estava resolvido.
Só que não.
O problema está cada vez mais intrincado. Sim, resulta também da muita procura por turistas que alimentam o Alojamento Local. E da avareza de uns quantos que se aproveitam das fragilidades da lei para usurpar para si, benefícios que deviam ser para quem precisa, como se vê no caso da Cortel, ainda com muito por explicar.
E agora, como se fossemos surpreendidos por um problema que não quisemos ver nos últimos 20 ou 30 anos, descobrimos que faltam casas para quem cá quer viver.
Sim, faltam casas para os mais carenciados, para os remediados, para os que têm ordenados razoáveis e até para alguns que parecem ricos.
O mercado mudou bastante. Os preços subiram demasiado. Os ordenados não acompanham os custos, nem no arrendamento e muito menos na compra de habitação permanente. E os bancos já não correm para emprestar a pobres que pagavam a vida inteira.
Mas não é só isso. Agora já não é como antigamente, que bastava fazer mais um quartinho ao lado da casa dos pais, um anexo ou uma construção nova feita com os rabiscos de um desenhador talentoso. Agora não. Agora é preciso projeto de arquitetura e de especialidades. É preciso respeitar o PDM e outros planos.
E ainda bem que é assim, que se valorizam os instrumentos de gestão do território, sobretudo o nosso que é tão escasso.
A questão não é essa.
O ponto é que não há dinheiro para tão muito. Se há para o terreno, falta para a obra. Se há para a obra, falta para os equipamentos. E se faltam os equipamentos, lá se vai a licença de habitabilidade…
Este círculo vicioso está a empurrar gente para fora. Para a emigração. Para as margens. Para a nova ‘Zona4’. Para o grupo dos que recebem o ordenado com uma mão e pagam a prestação com a outra e o que fica mal dá para menus de arroz com atum em lata.
E é agora, nesta aflição que só não vê quem não quer, que se declaram prioridades. As Câmaras olham para a habitação como uma prioridade. O Governo Regional vê na habitação uma prioridade. O Governo da República diz que a habitação é uma prioridade. E até a Europa declarou a habitação uma prioridade.
Faz lembrar aquela história do bêbado que, aflito para descer a calçada, pediu ajuda a todos os santos de que se lembrou. Chamou Santo António, São Pedro, São José e todos os que lhe vieram à cabeça: “Ajudem-me!”, gritou. De repente, escorregou e saltou meia dúzia de degraus de uma vez. “Calma!” – disse o bêbado. “Não era preciso ajudarem todos ao mesmo tempo!”
Moral da história: todo o apoio é bem-vindo, mas ajudem com regras justas e uma estratégia clara. E não o façam todos de uma vez.