A perfeição e a galinha do vizinho

Lembro-me de uma conversa a bordo de um autocarro, algures nos arredores de Lisboa, no princípio dos anos 90 do século passado, quando eu tinha 24 ou 25 anos, qualquer coisa por aí, e estava integrado num grupo de jovens jornalistas, vindos de vários pontos do país, que se ia deslocar à Bélgica, para conhecer a sede e o funcionamento da Comissão Europeia, e eu andava ali na capital em reuniões preliminares antes da partida, eu e os outros, de modo que, a certa altura, dois colegas que ocupavam o banco atrás do meu, um rapaz e uma rapariga, puseram-se a falar acerca da perfeição – creio que se referiam à perfeição das peças jornalísticas, mas já não tenho a certeza disso –, o que sei é que falavam acerca da perfeição e vai daí tocaram-me no ombro e pediram a minha opinião sobre o assunto, ao que respondi:

– Eu não acredito na perfeição.

Não tenho a certeza se foi exatamente isto o que disse, mas foi qualquer coisa com o mesmo significado e era verdade – não acredito na perfeição, embora goste muito da palavra pelo que ela contém de grandioso, distante, inalcançável e, sobretudo, fantástico, perigoso e inexistente.

Os meus colegas ficaram surpreendidos e um deles, talvez o rapaz, talvez a rapariga, já não me lembro, forçou-me a explicar o ponto de vista.

– Como assim?!

(…)

Interrompi a escrita.

Já passava das 18 horas e eu tinha de regar a horta ao lado da casa, nas zonas altas.

Às vezes, faço-o com vontade e entusiasmo e ponho-me a pensar que devia dedicar-me a tempo inteiro à fazenda, como faz muita gente moderna quando se cansa da cidade, devia sujar as mãos no húmus e tirar proveito do chão que herdei dos antepassados, devia viver uma vida pura e dura como a deles, todos os dias de sol a sol no poio, devia fazer negócio e sustento com a agricultura, sacar dinheiro da União Europeia, criar uma marca gourmet, 100% biológica, e jamais permitir que o mato levasse a melhor sob os meus pés e o meu olhar. Sim, eu devia fazer isso.

Outras vezes, porém, faço-o com tristeza e o coração esmagado pela memória do tempo em que a propriedade era bem cuidada e tudo nela estava equilibrado, nada pendia, nada caía, tudo corria, tudo fluía, porque todos os que a amavam estavam vivos, mas eu sei que não tenho essa força, sim, eu sei claramente que não tenho a paixão de nenhum dos meus antepassados face à terra onde assentam os meus pés e o meu olhar, eu sei que o mato continuará a levar a melhor e, por isso, tenho pena do feijão e das alfaces que estou a regar, tenho pena das couves e dos tomateiros e do manjericão, tenho até pena da água que cai sobre o alho francês e o pimentão e as cebolas.

E, contudo, nada mudou. Meu Deus, nada mudou! Está tudo igual! A casa tem o mesmo tamanho e não mudou de sítio e a fazenda também não mudou de lugar e continua do mesmo tamanho. Está tudo ali, na curva da estrada, na beira do ribeiro. Está tudo no espaço onde sempre esteve, tudo com as mesmas medidas e a mesma esperança. Tudo menos eu. A vida que falta não é a dos meus pais, nem a das minhas tias, nem a dos meus avós. A vida que falta é apenas a minha – eu que antes achava tudo perfeito e hoje vejo tudo imperfeito.

(…)

Então, virei-me para os meus colegas, lá a bordo do autocarro, algures nos arredores de Lisboa, e disse-lhes que onde todos são diferentes, sejam coisas ou pessoas, nada é imperfeito, ao passo que onde todos são iguais só a comparação entre uns e outros desfaz a perfeição de cada um. No fundo, disse-lhes, tudo depende do modo como olhamos para o mundo.

– É por isso que não acredito na perfeição.

Eles ficaram pensativos, mas pouco convencidos.

Talvez eu não tenha sido sempre assim. É óbvio que nem sempre fui assim – ninguém é tão linear ao ponto de ser eternamente o mesmo, isso é uma aberração –, mas a verdade é que quase nunca acreditei na perfeição. Seja como for, quero aqui realçar um aspeto, porventura o único que importa reter quando o propósito é conhecer o seu limite: A galinha do vizinho, embora sendo da mesma espécie e até mais magrinha, é sempre, sempre melhor do que a minha.

Eis a perfeição!

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *