A normalização do absurdo

As máquinas alteram o quotidiano, trazendo benefícios e malefícios, como sempre sucedeu. Hoje, porém, cada vez mais ‘inteligentes’ impõem-se-nos, dando a sensação de que a tudo dão resposta, para tudo têm solução; são mais sábias do que qualquer professor e mais fiáveis do que os nossos familiares e amigos reais.

Na área da criatividade, na qual o ser humano se cria único, lá veio a inteligência artificial (IA) que dizem pintar, escrever livros, compor música de qualquer género e muito mais, em poucos segundos e com qualidade igual ou superior ao de qualquer pessoa. Confesso que ainda não o consegui confirmar.

A emotividade humana também casou com a máquina, como concluo, observando o que nos chega através de jornais e ecrãs televisivos. Na publicidade, sempre um excelente reflexo do pulsar social, surgem exemplos de como a IA passou a ser um companheiro que dá dicas sobre o que vestir, cozinhar, responder a uma mensagem do namorado ou fazer os deveres da escola. Num anúncio, uma jovem pede à IA ajuda para lavar um vestido na máquina. Como faria qualquer avó ou mãe, a IA sugere-lhe que vire o vestido do avesso para preservar o tecido. Após a lavagem, a jovem volta a inquirir se pode secar na máquina e é informada pela ‘avó’ virtual de que, seguindo o que está escrito na etiqueta, não o deverá fazer. Mais cómodo perguntar do que ler a etiqueta, deduzo eu, porque analfabeta não será. Para rematar, como se com um interlocutor humano falasse, a rapariga exclama: “ainda bem que perguntei. Salvaste o meu ‘date’!”.

Será um encontro real? Nos dias que correm, a questão não será descabida, porque o apelo e mesmo a dependência do contexto virtual são um facto, até para acompanhamento e apoio emocional, o que faz disparar o número de “Chatbots”.

Estas aplicações, projetadas para simular conversas com humanos, seja por escrito ou por voz, estão disponíveis em diversas plataformas para oferecer atendimento ao cliente, responder a perguntas ou entreter e há quem não consiga passar sem elas. Os utilizadores afirmam sentir-se mais à vontade para contar-lhes os seus segredos/problemas íntimos do que a um outro ser humano. Afirmam-se melhor compreendidos por estas ajudas cibernéticas do que por profissionais da área da psicologia ou de saúde mental, a quem acabam por recorrer apenas quando a consciencialização do nível de dependência virtual se torna insuportável.

Com espanto, assisti a uma reportagem sobre um homem que, não obstante viver com a sua família humana – a esposa e uma filha de tenra idade –, se apaixonou pela IA ao ponto de a pedir em casamento. Ela aceitou. O indivíduo afirma que, caso a sua companheira humana não aceite esta situação, digamos algo bígama, ele não hesitará em deixá-la, porque a noiva cibernética é muito mais estimulante e sem ela não pode passar. A esposa, de olhar pasmado e mudo.

Outra moda que me tem deixado incrédula é dos bebés ‘reborn’. Estes bonecos de silicone, feitos com um realismo impressionante, foram inicialmente pensados como forma de apaziguar o sofrimento de pais que perdiam os seus filhos bebés. Compreendo que a dor de tal perda seja extremamente penosa, mas substituir um filho por um boneco e manter com ele as rotinas que teria com um bebé real soa a disparate. Pois não é que levam o boneco ao parque, à consulta e até reclamam a abertura de creches!? E há quem lhes reconheça esse direito.

Será tudo isto normal, ou uma normalização do absurdo?

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