Percepção e Realidade

Ora seguimos para mais 3 tópicos de leitura de verão. Generais, NATO e democracia

É curioso, para não dizer tragicómico, o desfile de generais na reserva pelas televisões portuguesas sempre que a guerra volta a ser trending topic. Ucrânia, Gaza ou o mar Vermelho – qualquer pretexto é bom para os ex-oficiais sacudirem a naftalina das suas condecorações e se sentarem em prime time com ares de Marechal do Império. Muitos deles, outrora fervorosos entusiastas da NATO, onde serviram e alinharam em centenas de exercícios conjuntos com os aliados, parecem hoje uns ressabiados antiglobalistas com pendores quase… eurasiáticos. Rejeitam a mínima contradição, esbracejam se alguém ousa argumentar, e defendem um exclusivo sobre as questões militares, como se tivessem patente sobre a verdade.

Pior: trazem a caserna para o ecrã. É vê-los a exigir silêncio reverencial de jornalistas, como se tivessem à frente dois ou três soldados rasos a quem ordenam “olhos no chão”. E não se pense que se restringem à táctica e à estratégia – não. Opinam sobre política com a desenvoltura de um líder partidário, para depois se escudarem no uniforme sempre que alguém tenta fazer-lhes frente. Alegam que tudo o que dizem são factos, não ideias. Como se a sua biografia os absolvesse do contraditório. Nalguns casos, há ainda uma misoginia pouco disfarçada, com interrupções sistemáticas às interlocutoras mais incisivas e aquele ar paternalista que só engana quem nunca vestiu um camuflado. São generais… mas da arrogância.

Alta patente, autonomia e aventais

Na Madeira, o Almirante Gouveia e Melo desceu à terra – e à pré-campanha. Se a sua autoridade moral se mede pela verticalidade com que prometeu “enforcar-se” caso entrasse na vida política, dir-se-ia que já deveria andar a preparar a corda. Mas como todos os arrependidos convertidos, cá está ele, em modo esclarecido, a distribuir sentenças e silêncios. A propósito, seria interessante saber a sua posição face às doutrinas geoestratégicas dos seus colegas de armas agora convertidos em opinion makers: concorda com a russofilia encapotada? Subscreve a hostilidade à NATO? Acha que os seus camaradas têm mesmo o monopólio da verdade factual?

De resto, a sua visita à Região foi um case study de como não cultivar autonomias. Questionado sobre a ligação marítima entre a Madeira e o continente – um tema que, reconheça-se, já tem mais mofo que um bidão do Alfeite – respondeu com a arrogância dos que acham que os problemas insulares se resolvem com um voo e um Google Maps. Desprezou a ligação como inviável, ignorando que o Estado não existe apenas para dar lucro. O mesmo Estado que, quando necessário, ordena que se mande militares para um navio-sucata em perseguição de fantasmas russos no Atlântico.

Mais surpreendente foi ver os autonomistas madeirenses a afagar o homem que representa o centralismo em pessoa. E aqueles que se arrepiam com maçonarias várias a comungarem o espaço com o candidato preferido do avental. A coerência política na ilha, às vezes, é como um submarino em manobra de evasão – submerge e desaparece.

A (sensação) de pobreza

Li por estes dias um artigo, com gráfico ilustrativo, que é um daqueles murros estatísticos no estômago da retórica miserabilista. E que me lembrou um caso que escrevi “noutra vida” em que um artigo de 2005 da The Economist relatava que um desempregado negro nova-iorquino, que se ocupava a comer asas de frango e ver Trash TV, tinha um rendimento disponível superior aonde um médico nigeriano afamado. Em dois séculos, o número de pessoas a viver em pobreza extrema caiu de 79,4% para uns residuais 8,5%, enquanto o PIB per capita mundial subiu dezassete vezes. A partir dos anos 1950, com o arranque do sistema económico moldado em Bretton Woods, o mundo passou a produzir mais, melhor, e a distribuir – ainda que imperfeitamente – os seus frutos. Foi o capitalismo, com todas as suas rugas, quem levou esta mudança ao terreno: eficiência, especialização, concorrência.

Mas por que razão, então, tanta gente hoje se sente pobre, mais pobre do que os seus pais e avós, que viveram com muito menos? Porque a pobreza contemporânea é muitas vezes uma questão de percepção. A comparação constante, a ansiedade tecnológica, a exigência social e o excesso de tempo livre transformaram a carência em sensação, e a frustração em diagnóstico. Enquanto os avós trabalhavam o dia todo e dormiam com a enxada aos pés, hoje há quem passe os dias a discutir propósitos no LinkedIn, entre cafés de especialidade e angústias existenciais. Falta-lhes um projeto de vida. Ou, ao menos, uma ocupação que lhes esvazie a cabeça antes de se encherem de autocomiseração.

A riqueza nunca foi tanta. A pobreza real, nunca tão rara. Mas a miséria emocional, essa sim, parece ser o novo flagelo da era digital. E não há gráfico que cure essa ferida invisível.

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