Vivemos um tempo em que a palavra “imigração” desperta ecos ruidosos, quase sempre inflamados por receios difusos e generalizações apressadas. Num país onde a inquietação cresce, torna-se premente distinguir o ruído da razão, o preconceito do critério.
É claro que nenhum Estado pode permitir-se uma política de portas abertas sem critério. A gestão das fronteiras exige responsabilidade, visão estratégica e um equilíbrio entre acolhimento e capacidade de integração. Nada disto é novidade… Contudo, o rigor não se pode confundir com frieza, nem o controlo com cegueira.
É necessário ver com clareza que não há uma única imigração, nem um único perfil de imigrante. Há quem entre à margem dos processos legais, sim — mas há também quem chegue com um contrato assinado, uma promessa firme de trabalho, com alojamento e alimentação assegurados pela entidade empregadora. E não estamos a falar de promessas vagas, mas de compromissos formais, respaldados por sectores económicos que, ano após ano, sofrem com a falta crónica de mão-de-obra.
Quantos jovens portugueses, tendo maioritariamente formação superior (e ainda bem!), aceitam hoje trabalhar na agricultura, na pesca, na cana-de-açúcar…? A escassez é real, e ignorá-la seria negligente. Quando alguém vem ocupar um posto que ficou vazio, cumprir uma função para a qual já não há quem queira candidatar-se, então não se trata apenas de acolher — trata-se de responder a uma necessidade concreta do país, da região.
Não podemos, pois, colocar no mesmo plano realidades tão distintas. Seria um erro, e seria sobretudo injusto, sujeitar ao mesmo crivo burocrático quem se apresenta com tudo em ordem — contrato, condições de subsistência, função definida — e quem chega em situação indefinida, à margem das exigências legais.
É aqui que urge diferenciar com inteligência e humanidade. Não para criar privilégios, mas para reconhecer mérito e responsabilidade. Não para afrouxar o controlo, mas para o tornar justo e eficiente.
O mundo precisa de uma política migratória lúcida e criteriosa — que selecione com rigor, sim, mas que também saiba valorizar quem vem contribuir de forma honesta e digna. De nada serve levantar muros indiscriminadamente, quando o que precisamos é de pontes bem construídas.
Nós, portugueses, temos a sorte de ter nascido num país que nos permite circular pelo mundo com liberdade, sem ter de marcar agendamentos para um visto que pode nunca chegar. Para muitos destes seres humanos, essa liberdade não existe — vivem presos numa jaula invisível, limitada por burocracias que tolhem o sonho de uma vida melhor. É importante termos consciência desta diferença e da responsabilidade que isso acarreta (aos que se preocupam com questões de igualdade e justiça social). Não se trata de aproveitamento nosso, não se trata de solidariedade. Trata-se sim de uma relação em que ambos saem a ganhar.
Parece-me perfeitamente enquadrável utilizar a expressão “sorte geográfica”. É um conceito simples, mas poderoso: a sorte de termos nascido em Portugal, um país que nos oferece liberdade para viajar, trabalhar e viver sem as barreiras que muitos outros enfrentam. Nascer aqui significa poder atravessar fronteiras com facilidade, enquanto tantas pessoas ficam presas a burocracias e obstáculos invisíveis. Essa sorte não é mérito nosso, mas uma circunstância que nos deveria obrigar a olhar para o mundo com mais consciência e responsabilidade.