Hoje estou cheio de medo

Peguei num dos meus cadernos de apontamentos datado de 2008, quando vivia em Moçambique, e a escrita arranca com uma citação de Stefan Zweig: “Envelhecer não é senão perder o medo do passado”. Depois, acrescentei uma frase que agora, passado tanto tempo, não consigo precisar se é da minha autoria ou daquele escritor: Recordar é a forma mágica de nos enganarmos a nós próprios.

Logo a seguir, escrito a lápis (quase todo o caderno está escrito a lápis), tomei nota da quantidade de cerveja Laurentina que tinha bebido na noite de 4 para 5 de outubro, ou seja, do feriado que assinala o Acordo Geral de Paz entre a Frelimo e a Renamo para o Dia da República em Portugal: 1360 ml. Isto deve ter gerado uma boa ressaca, mas não faço referência ao caso. Antes, opto por contar algo que ocorreu nessa madrugada:

Acordei às 04:11 com alguém a gritar no bairro ao lado da Missão – um grito de dor, de doença, não sei, talvez um grito de parto. São agora 04:45. Continua a gritar. É uma mulher. Talvez seja um grito de morte. Não sei. Já cá estou há dez meses, mas ainda não compreendo nada disto. Gritos no meio da noite. De repente, um galo canta e isso faz-me lembrar que nestas paragens os jacarandás florescem entre finais de agosto e meados de novembro. Hoje, hei de ir ver os jacarandás em flor.

Mais tarde, porém, acrescentei entre parênteses Não fui.

Depois, surgem mais duas citações. Uma de Tibulo: “Arranja um mundo para ti mesmo em lugares solitários”. Outra de Montaigne: “A primeira de todas as coisas deste mundo é saber pertencer a si mesmo”.

Não sei onde Diabo as fui buscar, estas malditas citações, talvez aos livros da biblioteca da escola onde dava aulas. Li muitos livros naquele tempo. Para dizer a verdade, acho que até então nunca tinha ouvido falar de Tibulo, um poeta romano do século I a.C.. Já de Montaigne conhecia algumas coisas e no meu caderno faço referência ao caso do filósofo cínico Estilpo, que ele menciona nos “Ensaios”.

Estilpo escapou ileso de um incêndio na sua cidade, no qual perdeu a mulher, os filhos e os bens de fortuna. Vendo-o em tão terrível ruína sem, contudo, manifestar pena, os amigos perguntaram-lhe se porventura não tinha experimentado nenhuma perda. Estilpo respondeu que não, que graças da Deus não tinha perdido nada de seu, pois estava intacto.

Logo a seguir, outra citação, esta de Horácio: “Procura ser superior às coisas e não escravo delas”.

Acho que estas malditas citações me davam força para aguentar África…

Em grande parte, escrevi no caderno, devo a descoberta da minha individualidade e da minha unicidade ao fascínio que reside nas coisas para lá da sua forma. Sempre me pareceu ridículo e vulgar achar bonito o que toda a gente acha bonito, pelo que ao correr dos anos agucei os sentidos no sentido de captar outros sinais de beleza, outras fontes de expressividade, quase sempre fontes e sinais invisíveis, do mesmo modo que procuro as ruas além das principais para melhor conhecer o sítio onde me encontro.

De certa forma, todos sabem que os atalhos e os caminhos secundários são os que conduzem aos lugares mais autênticos e belos. Contudo, poucos são os que enfrentam o desafio de percorrê-los, pois quanto mais se avança por aí, mais sozinhos e isolados vamos ficando, embora se abram diante de nós portas extravagantes de grandeza e infortúnio – as famosas portas da perceção – e a certa altura quase conseguimos ver as coisas como elas realmente são – infinitas. Eis, então, que a Morte se apresenta. O meu nome é Morte, diz ela e a gente percebe que, de facto, vivemos sempre no fim da vida.

Depois vem mais uma citação, neste caso Cícero, citado por Montaigne: “Filosofar é aprender a morrer, no sentido em que toda a sabedoria e raciocínio se concentram num ponto: o de nos ensinar a não termos medo de morrer”.

O caderno finaliza com a data 4 de novembro de 2008, ainda com muitas páginas em branco. Nesse dia, escrevi o seguinte: África assusta. Hoje estou cheio de medo.

Mas não explico porquê.

A rematar, também misteriosamente sem explicação, anotei uma breve passagem de “Os Irmãos Karamázov”, romance que nunca li: “Um espírito mesquinho, presunçoso e malevolente, pensou Pyotre Alexandrovich Miussov assim que viu o starets Zósimas”. Que raio queria eu dizer com isto?!

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *