Quem me conhece sabe que gosto de rituais e das regras que sigo voluntariamente para que determinada actividade tenha o resultado esperado. Jogue o jogo que jogar, as regras devem ser claras e observadas à letra para que não haja equívocos ou confusão. Se abrir o frigorífico de casa para degustar uma cerveja, faço por escolher o recipiente correcto para aquele tipo de cerveja e sirvo-a com o ritual aconselhado, para que não haja desculpas para o sabor da bebida. Gosto de observar todas as regras de quem veste um fato, como gosto de cumprir as regras de trânsito, por exemplo, especialmente as que têm pertinência na condução propriamente dita — as que permitem prever melhor o comportamento do outro condutor.
Também é verdade que, apesar de gostar de regras, não gosto que mas imponham. Sigo aquelas ali em cima, por exemplo, porque vejo lógica e utilidade nelas, ou porque me trazem algum tipo de prazer e conforto. A verdade é que, se não quero seguir as regras da sueca, não jogo sueca. Se quero jogar à bisca, sigo as regras da bisca — à risca. Nesta característica de personalidade, confesso, sinto-me pouco acompanhado.
Cada vez mais me apercebo, neste quase meio-século, que se querem leis para tudo: obrigar e proibir. O tipo da rua ao lado vem passear o cão aqui em frente e, apesar de recolher sempre os sólidos do bicho com o saquinho, deixa o animal fazer a sua micção aqui à porta? Forcem-se as fraldas! (Os fabricantes das ditas agradecem.) O senhor do café da esquina diz umas coisas que me ofendem? Censure-se, mas sem esquecer a referência (de forma incompleta, sempre) ao paradoxo de Karl Popper para justificar a censura.
A grande questão, para mim, é que muitos daqueles que querem impor comportamentos aos outros são os primeiros a não cumprir, eles próprios, as imposições comportamentais já existentes. Alguns até advogam a imposição para que eles próprios se comportem como propõem, mas afinal não praticam voluntariamente, como quando justificam a proibição ao tabaco para todos com a sua incapacidade de deixar de fumar. Consideram, no fundo, desejável um comportamento que eles próprios só põem em prática sob ameaça.
Compreendo e aceito que algumas regras possam ser impostas para facilitar a vida em sociedade, especialmente aquelas que protegem a propriedade (integridade física incluída) do indivíduo, mais próximas da aceitação consensual nessa sociedade. Também compreendo que, de vez em quando, apetece tramar o juízo ao vizinho que ouve a música “errada”. É muito compreensível, mas pouco conducente à convivência saudável entre os componentes da sociedade.
Se negociamos comportamento através de intermediários (o legislador, o polícia, etc.), não estamos a viver em sociedade: estamos a afastar-nos do outro, a evitar dizer-lhe o que nos desagrada no comportamento dele e batalhamos antes por lhe enfiar uma trela que também nos prende, mesmo que a ignoremos. Um dia descobrimo-la e é tarde demais. É que as leis que pedimos também se aplicam a nós e o outro também as pede. O mesmo cacetete judicial que eu preconizo e autorizo para o outro, pode sempre ser usado contra mim.
Se alguém nos ofende, digamo-lo. Se continuar a ofender apenas por ofender, afastemo-lo da nossa vida. A sociedade é um conjunto de indivíduos que negoceiam comportamentos entre si, constantemente. Dá trabalho, nem sempre corre exactamente como queremos, mas as alternativas são viver em isolamento, ou a supressão do indivíduo.