Diálogos em África (Conclusão)

Ele sentia-se, de facto, perdido no vazio de si e a dor na cabeça estava mais forte, mas também começava a vibrar com a feitiçaria da conversa com desconhecidos, a quem se pode dizer tudo, ou quase tudo, todos os segredos, toda a inocência e toda a malvadez que nos vai na alma, mas não disse nada, ao passo que o gigante continuou a falar com a sua voz de trovão:

– Este meu amigo – disse, batendo nas costas do homem de barba preta e óculos redondos – é escritor e vai relatar estas coisas num romance.

– Uma trilogia – precisou o homem de barba preta, bem-disposto, pondo-se a enrolar um cigarro.

O gigante expôs os temas:

– O título do primeiro livro será “Pensão Estrela”, esta onde nos encontramos, o lugar onde se reúnem os chupadores de tutano e fingidores de surpresa nas horas livres, os loucos, os imbecis, os doentes, os fanáticos, os gananciosos, os maricas, os santos e todos os brancos que por cá passam. Depois, seguir-se-á “África SA”, ou “África Ld.ª”, ou “África Inc”, o autor ainda não decidiu o título, no qual vai denunciar as patifarias e os negócios nojentos envolvendo empresas ocidentais, ONG’s, igrejas de todos os credos e políticos de todos os quadrantes e outros macacos que tais vindos dos quatro cantos do mundo. Finalmente, virá a público “Abraça-me, África”, a fechar a trilogia. Neste romance, o meu amigo vai abordar o elevadíssimo grau de pureza que a maldade costuma adquirir por estas paragens e também a inocência cristalina que vagueia livre no mato. Vejam só: ele vai falar da maldade e da inocência diamantíferas. Não é brincadeira. Ao longo dos três romances, o meu amigo vai mostrar aquilo que somos, vejam bem, aquilo que somos, não aquilo que aparentamos ser ou que fingimos ser, mas aquilo que efetivamente somos, aquilo que brilha debaixo do sol oculto em nós.

Fez uma pausa para tossir, bebeu um golo de cerveja e prosseguiu:

– Por isso, tenham muito cuidado com ele, porque nos vai transformar em personagens e talvez a gente não goste de saber certas coisas a nosso respeito. Os padres, então, hão de querer matá-lo, como fizeram com Jesus.

O gigante finalizou o discurso com uma tremenda gargalhada.

– A sério? – Disse a mulher baixinha, olhando com espanto para o homem de barba preta. – Estás a escrever um livro?

– Qual quê! – Respondeu o gigante. – Ele não aguenta aqui até ao fim deste mês, quanto mais escrever romances sobre esta porcaria.

– Não me digas! – Admirou-se a mulher baixinha. – Vais-te embora!

O homem de barba preta e óculos redondos, cujo nome terminava em ad, ou art, ou ato, não disse nada.

– E a Inês? – Perguntou a mulher baixinha.

A negra Inês não estava presente. Tinha ido à casa de banho e além do mais estava aborrecida com a conversa dos brancos, que por certo não entendia, ou não lhe dizia nada, ou lhe parecia tola e absurda. Quando voltou, chegaram também ao restaurante três alegres rapazes indianos e dois alegres rapazes italianos. Entraram de rompante e gerou-se ali uma exultação semelhante ao rebentamento de fogos-de-artifício e ele pôde constatar que todos eram como pareciam ser, a mulher baixinha com umas pernas exemplares, o gordo de olhos azuis, o gigante com voz imperativa, a negra Inês sempre em silêncio, todos menos o homem de barba preta e óculos redondos, que, afinal, tinha a barba já meio grisalha e o cabelo comprido, algo em que não tinha ainda reparado, por estar amarrado em coque ao nível na nuca.

Quem será esta gente? – Pensou ele e no mesmo instante entrou no restaurante um indivíduo a quem chamavam Papa Joe, embora os empregados o tratassem por Chuck Norris, porque, de facto, era parecido com o Chuck Norris. Papa Joe informou-os que vinha de um sítio no mato, a trinta quilómetros dali, onde, disse ele, It’s raining like hell, coisa que o surpreendeu, pois nunca lhe ocorrera que pudesse chover no inferno. Depois, Papa Joe mandou vir cerveja para todos e durante meia hora estiveram em grande algazarra. De repente, alguém disse:

– Vamos à discoteca do Hassan.

– Sim! – Gritou a negra Inês e foi a primeira vez que abriu a boca. – Vamos à discoteca dos vampiros!

[Para melhor compreensão desta história, remeto para as crónicas intituladas ‘O vazio atrás das palavras’ e ‘Uma noite com vampiros’, publicadas em 22 e 29 de março de 2018. Elas são a essência da coisa.]

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