A Raquel e o Luís casaram-se

A Raquel e o Luís casaram-se em 6 de setembro, em Viseu, e finalmente visitei a cidade. No avião que me levou ao casamento, ouvi a voz de uma comandante, que pilotava o Columbano Bordalo Pinheiro; curiosamente, iria ver algumas das telas deste pintor no Museu Nacional Grão Vasco. Indo eu, indo eu a caminho de Viseu, de carro pois a esta capital de distrito do interior não se pode chegar de comboio, vi cartazes e cartazes do partido de extrema-direita.

Na igreja, sentei-me ao lado da Margarida, reformada do ofício de transformar ideias numa língua em palavras noutra, e vislumbrei os noivos por entre as bonitas colunas de granito — em que Viseu é fértil — do séc. XVI, disse-me a senhora que, no final do casamento, apaparicava as sempre-vivas que adornavam as margens da nave central e me apontava na parede, agora despida de música e de cor, o local onde antes estava o órgão. Vi também meninas a se esticarem para chegar ao microfone pois o microfone ainda não é feito para meninas.

A páginas tantas, o Luís, na altura em que os noivos trocam os votos, disse «Eu, Raquel»; houve sorrisos, mas percebi logo que nestas duas palavras o Luís levou ainda mais além o que dizia a noiva no ritual do casamento romano: «Ubi tu Gaius, ego Gaia» (Onde fores Gaio, serei Gaia). O Luís não só disse isto, como também uma coisa muito mais fundamental: onde quer que estejam, o Luís será Raquel. Foi bonito voltar à família da Raquel, que já não via há algum tempo — e que me abriu as portas de sua casa como se sempre nos tivéssemos conhecido, como já nos tinha aberto os braços, a mim e a uma colega madeirense, num almoço em Coimbra, cidade onde conheci a Raquel, onde não tínhamos familiares, e onde acabámos por ganhar uma família —, conhecer a família do Luís e embrenhar-se pela família alargada de ambos, pelos amigos, por aqueles que vão ficando e pelos que não se esquecem, mesmo já não estando.

Festejou-se e, no dia seguinte, ainda havia Viseu para ver e os viriatos para provar. O museu Grão Vasco, mesmo ao lado da Sé, foi uma muito agradável surpresa, com a primeira representação de um índio na pintura europeia. Estava também patente uma exposição temporária sobre as gravuras do Foz Côa que não sabiam nadar, e como a juventude, e a população, de uma comunidade do interior português se uniu, e com ela o país, há mais de 30 anos, em torno de umas gravuras paleolíticas das quais o restante país só então começava a ouvir falar. Apesar do muito dinheiro já investido nas obras da barragem ainda se pôde salvar as gravuras pela união pois nem só de «desenvolvimento» vive o homem. A voz de Fernando Alves prenunciava algo de bonito por detrás da parede, e eu que tinha ido a um casamento, via, na mesma sala, naquele lugar onde nunca tinha estado, o quadro Torrão de Terra de Manuel Zimbro e as três litografias de Lourdes Castro — companheira de Zimbro —, feitas em Berlim, duas no meu ano de nascimento, como as Sombras do Fim do Ano, e outras obras de artistas que se associaram ao movimento de defesa das gravuras respondendo ao apelo da Assírio & Alvim.

À hora de estar em Aveiro, terra de adoção do Nélio e da Ana — e os amigos visitam-se —, ainda não tinha saído de Viseu, nem visto a igreja barroca nem o museu Keil Amaral… mas não podia pois ainda tinha de ir a Cabanas de Viriato ver, ainda que fugazmente, o museu de alguém por quem tenho uma grande consideração, Aristides de Sousa Mendes, o nosso cônsul em Bordéus durante a II Guerra Mundial, e um Juste parmi les Nations, que, desobedecendo ao ditador, concedeu milhares de vistos, sobretudo a judeus, para que pudessem fugir por Portugal para paragens mais seguras, como os EUA. O facto de ter visto crianças a visitar o museu num final de domingo, agradou-me. O que diria Aristides neste Dia Internacional da Paz, em que vos escrevo, sobre Gaza, o reconhecimento do Estado da Palestina e o comportamento do país — que na altura ainda era apenas terra prometida —, de que tantos futuros nacionais salvou?

Na volta ao Porto, ainda ficou uma nesga de tempo para ir a Serralves. Por sobre as árvores, o olor a liberdade, a magnífica exposição de fotografia da sul-africana Zanele Muholi derrota o apartheid em nós, sobretudo daqueles que querem impor aos outros como viver a sua vida. Não posso acabar este artigo sem dar vivas ao Hermeto! «Quem desejar homenageá-lo, deixe soar uma nota [na voz] e ofereça ao universo». Até breve.

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