O equívoco do ataque gratuito

Decorrem cinquenta e um anos do 25 de abril. Em paralelo, celebram-se os cinquenta anos da consagração da autonomia político-administrativa da Região Autónoma da Madeira.

O 25 de abril abriu portas à liberdade, à tolerância, ao pluralismo e à dignidade de cada cidadão. A autonomia abriu portas, nos termos do EPA-RAM, ao reconhecimento de um sistema de governo próprio, com competências legislativas e executivas que garantem liberdade no processo de tomada de decisão política.

Entre as conquistas alcançadas está a liberdade de expressão, que se tornou o símbolo maior da cidadania democrática, pedra angular de uma ordem política em que o cidadão pode questionar e discordar.

A Constituição da República Portuguesa (art.º 37º) consagra este direito como condição essencial da democracia, mas não o isenta de limites – a defesa da honra, da verdade, da integridade cívica e da dignidade humana de cada indivíduo também são valores constitucionais (art.º 26º).

Contudo, cinquenta anos depois, a liberdade é demasiadas vezes confundida com o direito ao insulto gratuito, à difamação, à injúria ou à agressão verbal dissimulada de opinião legítima.

Quando se reduz direitos constitucionais a uma licença para atacar, deturpar ou caluniar, trai-se não só o espírito de Abril, mas o sentido mais profundo da salutar convivência democrática.

O espaço público português é revelador. Há uma perigosa tendência para confundir liberdade com licenciosidade verbal. Existe uma tentação crescente de substituir o debate de ideias pelo ataque pessoal e assassinato de carácter.

Neste âmbito, permitam-me incitar-vos a refletir sobre as ‘falsas promessas’ em tempo de campanha eleitoral. Apercebemo-nos, em demasiados discursos de candidatos às eleições autárquicas, da ausência de propostas concretas assentes em evidências, da sua viabilidade. Há promessas que nem são da competência municipal. Fazem promessas demagógicas que tendem a apelar ao medo ou à indignação, descartando qualquer debate racional sobre a matéria. Curiosamente, são os candidatos de partidos que se levantam como defensores da ‘liberdade total’ que a utilizam como escudo para perseguir, caluniar e ostracizar quem ousa discordar da sua narrativa populista.

É justamente aqui que reside o perigo: quando a política se reduz a este registo, o espaço público transforma-se em arena de ofensas em vez de fórum de debate e deliberação. A liberdade de expressão não significa impunidade para a desinformação, nem tolerância acrítica ao insulto gratuito.

O público quer ser informado, quer ver que os candidatos se responsabilizam pelas palavras ditas, que há coerência entre dizer e fazer. E merece que o debate público seja limpo, respeite os factos, ao invés de amplificar o que apenas serve agendas pessoais de alguns protagonistas.

Insisto nesta questão: a democracia é incompatível com a intimidação, a perseguição, a difamação, a calúnia, a injúria. A crítica política é legítima e necessária, mas deve assentar em factos, argumentos, alternativas, ideias, ideais e valores.

A liberdade de expressão não foi conquistada para legitimar campanhas de difamação, mas para garantir que todos possam participar no debate público de forma esclarecida e digna.

Celebrar os 50 anos de Abril ou da Autonomia não pode significar apenas evocar a memória dos grandes feitos e das conquistas alcançadas. É também um exercício de responsabilidade cívica que reafirma a centralidade da liberdade e que recusa o seu uso abusivo.

Defender a liberdade de expressão implica rejeitar a sua degradação em insulto. Esse é o maior desafio que enfrentamos, hoje.

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *