No nosso dia-a-dia manifestamos a nossa esperança de futuro, com recurso a esta construção gramatical (Quem me dera), recorrendo ao mais-que-perfeito do indicativo do verbo dar, significando o tal desejo, sendo recorrentemente utilizado em frases exclamativas.
Pois bem, escolhi este título porque hoje de manhã, no rádio, ouvi a fadista Mariza, naquele fado que traduz a nossa alma lusitana, recorrendo a esta expressão, em sinal de esperança, de vontade que aconteça, pois cantava ela: “quem me dera abraçar-te no outono, verão e primavera”.
E lá fiquei com aquela música “na cabeça”, pensando no alcance daquela expressão idiomática, “quem me dera”, através da qual se manifesta um desejo que, muitas vezes, sabemos ser inalcançável, pois a sua concretização está fora do nosso alcance.
Lembrei-me que, também eu, não a cantar (porque aí seriam os outros a dizer,
quem me dera que este se calasse), utilizei o “quem me dera”, quando me falaram da possibilidade de redução das custas judiciais, do aumento do número de magistrados e funcionários judiciais nos tribunais, da alteração da Lei dos actos próprios de Advogado e Solicitador, duma justiça mais acessível a todos os cidadãos.
Na verdade, lendo o programa do Governo da República, no que à justiça se refere, quem me dera que, os objetivos apresentados, que vão desde a valorização das carreiras, à gestão do património da Justiça e dos seus recursos financeiros, à transformação digital, passando pela celeridade processual, sublinhando os direitos das vítimas de crime, acrescido da questão da organização judiciária, do sistema prisional e de reinserção social, da segurança, da revisão do Código de Execução das Penas, incidindo também no combate à corrupção, fossem mesmo concretizados.
Mas, sem querer ser pessimista, confesso que, levantam-me algumas reservas, não quanto ao objeto das propostas, mas sim, pela forma da sua concretização. Como exemplo temos a proposta do confisco de bens em casos de corrupção e outros crimes, mesmo após os crimes prescreverem ou os arguidos morrerem, pois continuo a acreditar que a justiça tem de ser feita, que a ilegalidade e o crime não podem compensar, contudo, tendo sempre presente a plena garantia de defesa do cidadão.
Por outro lado, o Governo quer criar um grupo de trabalho, constituído por académicos, magistrados e advogados, para garantir a celeridade processual e a eliminação de megaprocessos.
Quem me dera que, o resultado desse trabalho, seja bem diferente do que foi recentemente apresentado por um outro grupo, o qual, por exemplo, limitava os recursos para o Supremo, e imponha multas elevadas para umas supostas medidas dilatórias.
A celeridade processual e a redução da pendência processual, não pode colidir nem pôr em causa o direito de defesa dos cidadãos e, não se resolve com limitação no exercício dos direitos, nem com o dificultar do acesso aos tribunais, isso não e justiça.
Quem me dera que, também seja estudado e pensado o fenómeno da mediatização da justiça que, nos dias de hoje, tem conduzido ao crescimento duma, chamemos, justiça popular, que é perigosamente feita através da comunicação social, das redes sociais e dos burburinhos locais, onde a opinião pública cria os culpados e identifica as vítimas, onde, horas a fio, temos os ditos especialistas a comentar, misturando, fraquezas técnico-jurídicas com preconceitos sociais e que, até já dão as decisões, assentes em juízos de valor e tendências sociais.
Esperando que, tudo isto, não seja apenas mais uma esperança que, se esfumará no tempo, não passando de mais um “quem me dera”.
Lá vou chamar à colação aquele meu cliente (do se fosse comigo), porque o homem, não pára de me surpreender, imaginem só que hoje de manhã encontrei-o e, depois do habitual, “bom dia senhor doutor, como está”, lá me disse: Senhor doutor, os meus parabéns, já sei que na sua tomada de posse, utilizou a IA, acho que se chamava Toga. E acrescentou: Doutor, quem me dera ter uma IA em casa, assim, já não via aquele programa da sentença, dava as minhas próprias decisões.
Lá lhe agradeci e expliquei que quisemos demonstrar isso mesmo, que a IA é uma ferramenta ao dispor da justiça e não um mecanismo de decisão.
Ele de repente: ah, Ya, antes a ferramenta era o martelo do juíz, agora é a toga dos Advogados, já percebi tudo.
Palavras para quê, perante isto apenas pensei: quem me dera que, um dia, este homem tome juízo e saiba o que diz.
E, para terminar, só espero que depois deste texto, não seja o caro leitor do JM a pensar: quem me dera que, daqui a quatro semanas, este se lembre de escrever alguma coisa de jeito. Sabendo que isso não passará dum desejo, eu diria: Também eu, pois, quem me dera saber escrever.