Comentadores em fúria

O vídeo – 1.ª parte: um homem bate suavemente à porta de uma casa onde estão a ex-mulher e o filho de nove anos. Passa das quatro da madrugada. Não sabemos quem lhe abre a porta ou porque o faz.

2.ª parte: uma mulher está num canto do jardim a ser agredida. Os seus pedidos de ajuda, misturam-se com as súplicas do menino para que o pai pare de bater na mãe, a quem pede que se levante. Ela geme que não o consegue fazer. O homem desvairado entra em casa. O menino segue-o, repetindo a sua súplica. O homem volta a sair, abraça o filho por instantes e diz: “não, filho. Sossega”. Continua as acusações à mulher: “tu disseste! Tu disseste!”. Ela continua a pedir ajuda. Tenta erguer-se e o filho estende os bracinhos para apoiá-la. Que herói este menino!

Assim termina o filme partilhado nas redes sociais e aproveitado pelas televisões que, com ele, asseguraram audiências e deram ao episódio especial visibilidade. Cenas de violência doméstica são reportadas diariamente e esquecidas. Porém, em Machico, foram captadas imagens. Jornalistas, armados de microfone e cenho convicto, alimentaram a condenatória fogueira mediática: o homem tinha de ser preso, proibido de ver ou contactar com o filho. Quanto cinismo! Tão preocupados com a criança, mas sem se coibirem de expô-la, vezes sem conta, no ecrã, lado a lado com mesas de especialistas, daqui e dali, a desfiar análises e opiniões.

O povo soltou a fúria e os dedos nos teclados, num frenesi de injúrias, apelos de justiça popular, condenação à prisão, não só para privação de liberdade, mas para receber o corretivo que, consta, é dado pelos outros presos aos “caloiros”. (Coisa que acho execrável e inadmissível, mas que, parece, muitos aprovam). O agressor estava no pelourinho público e todos queriam dar a sua achega justiceira. Pensei na história da humanidade e de tempos idos, quando os condenados eram conduzidos ao cadafalso ou à fogueira e a multidão afluía para os ver passar e aproveitava para invetivá-los, cuspir ou atirar pedras sobre os seus corpos torturados.

Os séculos passam. Será que não evoluímos? Será toda esta raiva em cima de um homem a forma de descarregar a frustração do insucesso coletivo de conseguir exterminar a violência doméstica, tantas vezes, como no caso presente, potenciada pelo consumo do álcool?

Ah, não! Aí não se toca! Somos excelentes produtores de vinho, aguardente – que agora é rum – temos ponchas fantásticas, cervejas e sei lá que mais! Há que manter os níveis de consumo para animar a economia.

Há décadas que sabemos de alcoólicos que moem a família à pancada, relatos muitas vezes ouvidos com um sorriso, como se um bêbado tivesse graça ou se a sua maldade não lhe pudesse ser atribuída. “É o álcool. Ele até é boa pessoa”, diz-se.

Hoje, com melhores condições de vida e jovens mais informados, seria de esperar que o respeito pelo outro se tivesse instalado nos seus cérebros e os comportamentos se tivessem alterado. Contudo, a realidade prova o contrário.

Enquanto não interiorizarmos o dever dos nossos limites e o respeito devido aos outros teremos sempre fracassado e não é manifestando ódios públicos e persistindo na violência como punição da violência que faremos uma sociedade melhor.

O homem de Machico procedeu mal. Está a pagar por isso – que lhe sirva de lição. Lamento as vítimas – o filho, a mãe, os avós – todos estarão a sofrer. Os restantes, em vez de ajudar a flagelar quem está no pelourinho, devíamos insistir em estratégias para, de facto, acabar com estas práticas.

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