Supremo vê “fraude à lei” na venda de crédito malparado na habitação

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) anulou, em menos de um ano, a venda de empréstimos à habitação realizadas por bancos a empresas não supervisionadas pelo Banco de Portugal, por ver “fraude à lei” nas operações.

Em dois acórdãos semelhantes, um de outubro de 2024 e outro de maio de 2025, o STJ avaliou se as operações de “cessão de crédito” realizadas pelo Banco Santander Totta e pelo BPI relativamente a clientes concretos eram, ou não, legais.

Nos dois casos, os coletivos de juízes concluíram que os bancos fizeram vendas irregulares, em violação da legislação que protege os clientes bancários.

Os negócios foram celebrados pelas instituições financeiras com empresas não financeiras, o que fez com que os clientes deixassem de estar protegidos pelas regras do sistema financeiro a partir do momento da venda do crédito.

O primeiro caso diz respeito a um crédito à habitação vendido pelo Santander à empresa luxemburguesa LC Asset 1 S.A.R.L. O segundo refere-se à venda de um crédito feita pelo BPI à empresa XYQ LUXCO S.A.R.L., também sediada no Luxemburgo.

Embora as decisões do STJ só se apliquem aos casos concretos, são exemplificativas das práticas seguidas nos últimos anos por vários bancos, em transações de grandes carteiras de crédito malparado a entidades ligadas a fundos de gestão de ativos que, após a aquisição do crédito, trabalham com empresas de cobrança em incumprimento com o objetivo de reaver o dinheiro ou tomar posse do imóvel dos clientes que se encontravam com dificuldades de pagamento da dívida.

No acórdão de maio deste ano, relativo à transação do BPI, o tribunal explica por que razão vê existir uma “fraude à lei”.

Segundo o coletivo de juízes, se um crédito contraído para a compra de um imóvel destinado à habitação for comprado por uma entidade não supervisionada pelo Banco de Portugal, a operação é nula porque o contrato “passa a estar excluído” da proteção consagrada na legislação que regula os créditos bancários (o Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho).

Para o tribunal, um cidadão, ao estar excluído desse regime, deixa de beneficiar das “normas imperativas” que o protegem quando enfrenta uma “dificuldade financeira” ou quando entra em “incumprimento”, deixando de poder exercer o chamado “direito de retoma” do contrato, um dos direitos consagrados nesse diploma.

O Código Civil permite aos bancos cederem parte ou a totalidade de um crédito a um terceiro, independentemente do consentimento do devedor, desde que a cessão “não seja interdita por determinação da lei”.

Como o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 tipifica como “fraude à lei” as situações em que os contratos ficam “excluídos do âmbito da aplicação” do diploma e, para o tribunal, foi o que aconteceu na venda do BPI.

No acórdão do STJ, os juízes sustentam que, se um cliente quiser retomar o crédito, isso não acontece porque a empresa compradora “não pode conceder crédito”. Ao mesmo tempo, a instituição de crédito já não pode operacionalizar esse direito.

O entendimento foi idêntico ao acórdão de outubro de 2024 relativo ao Santander.

À Lusa, os dois bancos rejeitam que o direito de retoma deixe de se aplicar.

Fonte oficial do BPI alega que se os clientes o pretenderem, assegura esse direito readquirindo o empréstimo.

Fonte oficial do Santander entende igualmente que o direito “não é inviabilizado em virtude da natureza da entidade cessionária”.

No entanto, nos dois acórdãos, o STJ considera que o direito fica em causa, vincando que a venda do empréstimo a uma entidade que não é uma instituição de crédito funciona, na prática, “como modo de ‘fugir’ ou tornar mais difícil (impossível) o direito que a lei atribui ao devedor” de retomar o pagamento a prestações.

Entretanto, haverá novas regras nas cessões de crédito. Portugal está a transpor, com atraso, uma diretiva que cria uma maior proteção dos clientes, que não poderão ficar em pior situação do que antes da venda.

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