João Apolinário era um homem de condição baixa e má fama, um troglodita, e toda a gente tinha medo dele, mas também era muito amigo de um ilustre alemão que trabalhava na Escola Médico-Cirúrgica. Ao contrário do que seria de esperar, esse professor-cirurgião não era alto nem loiro, pelo que à primeira vista se confundia com os locais, baixos e toscos, porém tinha feições e formas delicadas e era branco e frio como mais ninguém. Usava óculos redondos assentes no nariz pontiagudo e atrás das lentes brilhavam fundos dois olhitos azuis, quase encostados um no outro, formando uma espécie de trema na escrita do rosto. A boca era um traço sinistro e estava quase sempre fechada. Quando a abria para falar, carregava nos erres e dizia apenas o essencial.
– Prréciso dum cadáverr.
O Alemão e o mal-afamado João Apolinário conheciam-se há mais de dez anos e estavam ligados por uma amizade incondicional, decorrente dos acontecimentos iniciais que os uniram. Volta e meia, encontravam-se nas tascas mais sombrias da cidade.
– Para que queres tu um cadáver, porra?
– Parra fazerr experriências – disse o Alemão e bebeu um trago de aguardente com a mesma delicadeza de quem passa o bisturi em carne viva.
– Experiências! – Sussurrou João Apolinário, arqueando a grossa e negra sobrancelha sobre o olho esquerdo. – Por acaso não queres que eu mate alguém?
– Não, Apolinárrio. Nós não somos assassinos.
O Alemão era de falas e modos sossegados e cada palavra sua, cada gesto, cada olhar emanava uma estranha e misteriosa força apaziguadora, como se em cada olhar, em cada gesto, em cada palavra vivesse um anjo.
– Quérro que vás ao cemitérrio buscarr um – explicou. – Foi entérrado ontem. Mórreu com doença que eu quérro estudarr melhorr.
E foi assim, numa tasca da Rua da Praia, na noite de 12 de novembro de 1895, que se firmou o contrato dos cadáveres, sendo que até ao fim do século XIX João Apolinário assaltou três cemitérios e conduziu sete corpos a casa do professor-cirurgião, nos arredores da cidade, no meio de uma fazenda de cana-de-açúcar. Os mortos eram depois levados para a cave, mas a cave não cheirava a morte, porque o Alemão mantinha-a perfumada com substâncias mágicas e inebriantes, e ali eram dissecados à luz de velas e candeeiros com recurso a várias ferramentas, incluindo serras, facas e podoas grosseiras.
O Alemão tomava notas num caderninho de capa preta e fazia desenhos num bloco enorme, consultava livros, franzia a testa, sorria, ficava especado, agitava-se e as duas pedrinhas de gelo vivo no seu rosto ora obscureciam-no, ora incendiavam-no.
João Apolinário, que atuava como ajudante, nunca soube a que conclusões chegava o insigne amigo germânico, mas muitas vezes ouviu-o murmurar:
– Intérressante.
Depois, o Alemão teve de fugir, porque era protestante e havia um grupo de padres católicos, liderado por um cónego estuporado, que não gostava nada dele e, nas missas, cada um na sua paróquia, incitava os fiéis a persegui-lo. Por isso, apagou todos os vestígios de morte que havia na cave e plantou roseiras no poio onde enterrava os restos mortais após as experiências e preparou-se para abandonar a ilha à socapa.
Numa noite sem lua do mês de agosto de 1901, João Apolinário foi ter à sua casa.
– Está tudo tratado – Disse-lhe. – Vamos agora para a Praia Formosa e depois segues num bote para o navio ao largo.
Fizeram o percurso até à costa como borboletas noturnas e quando chegaram à praia começou a chover, uma chuva fina, miudinha, mas que haveria de durar toda a noite. A rebentação estava um pouco forte, mas à frente o mar não se mexia. Sentaram-se no calhau, à espera do bote, que vinha já a caminho. João Apolinário tirou do bolso uma garrafa de aguardente, sacou a rolha com os dentes e isso fez o mesmo som de uma pedra a cair na vertical na água, cuspiu-a para um canto. Bebeu. Depois, entregou-a ao amigo.
– Trouxe de propósito para a despedida – disse.
O Alemão bebeu e desabafou:
– Vou térr muitas saudades.
João Apolinário abraçou-o e prometeu:
– Quem te expulsou vai ter o que merece.
O Alemão não percebeu a quem se referia, ou melhor, fingiu não perceber e ficou calado. Bebeu mais um trago de aguardente e fixou o bote cada vez mais perto, com dois homens a remar. Pronto. O mais que se pode dizer é que partiu e nunca mais voltou.