Altas problemáticas: punir famílias ou responsabilizar o Estado?

A permanência de doentes hospitalizados que, do ponto de vista clínico apresentam condições para regressar ao domicílio ou transitar para outro nível de cuidados, mas que continuam a “ocupar” camas hospitalares por ausência de condições sociais, familiares ou institucionais é uma realidade cada vez mais visível no Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira.

Este fenómeno suscita uma questão central: trata-se de uma problemática da esfera da saúde, da segurança social, ou de responsabilidade familiar?

À primeira vista, a responsabilidade parece recair sobre o setor da saúde, uma vez que o doente permanece no hospital e é a equipa clínica que define o momento da alta. Todavia, compreende-se que a permanência além do tempo clinicamente necessário não decorre de falha médica ou de enfermagem, mas sim de insuficiência de respostas extra-hospitalares.

Do ponto de vista da Segurança Social, persiste a escassez de estruturas residenciais e de unidades de cuidados continuados, particularmente direcionadas para pessoas em situação de dependência.

No âmbito familiar, a realidade é dura: enfrentam processos burocráticos morosos, listas de espera prolongadas e incapacidade económica para assegurar os cuidados necessários ao familiar dependente.

A conjugação de múltiplos fatores, associada à ausência de mecanismos eficazes de articulação entre os diferentes intervenientes, conduz a um vazio de respostas, no qual o hospital acaba por assumir um papel substitutivo, mantendo o utente em risco acrescido de infeções, perda de autonomia e isolamento.

Enquanto não existir comunicação eficaz e estruturada entre as partes, os hospitais continuarão a ser espaços de contenção de problemáticas sociais, em detrimento do bem-estar dos doentes e da eficiência do sistema de saúde.

É, por isso, fundamental sublinhar que o hospital não é um lar de idosos, nem pode substituir a rede de suporte comunitária. Manter camas ocupadas por doentes estabilizados implica aumento dos custos operacionais, sobrecarregando (ainda mais) os profissionais de saúde e comprometendo o acesso a quem realmente precisa de internamento.

Contrariamente ao discurso político que, por vezes, desvaloriza a complexidade desta questão, as denominadas “altas problemáticas” representam, de facto, a resposta mais onerosa e menos adequada, tanto para os doentes como para o sistema.

A gravidade desta situação tem conduzido a afirmações públicas que defendem a criminalização do abandono de idosos em contexto hospitalar após alta clínica. Embora esta posição possa ser compreendida pelo desespero gerado pela ausência de soluções imediatas, suscita questões éticas e sociais relevantes: será justo responsabilizar unicamente as famílias, quando o Estado falha em assegurar políticas sociais e respostas de cuidados continuados suficientes? A solução não reside na criminalização, mas sim no reforço de políticas integradas entre Saúde e Segurança Social.

É preciso reforçar a Rede de Cuidados Continuados, agilizar processos de referenciação social, criar equipas de transição hospital/comunidade que preparem a alta desde o primeiro dia de internamento, e desenvolver parcerias sólidas com Instituições Particulares de Solidariedade Social e lares privados.

Importa valorizar e reconfigurar o apoio domiciliário, garantindo o seu financiamento adequado, possibilitando que os doentes permaneçam no domicílio com dignidade, sempre que essa seja a sua vontade e condição clínica.

Se queremos um sistema de saúde e de proteção social verdadeiramente centrado na pessoa, é tempo de assumir que as soluções exigem políticas integradas, liderança firme e, sobretudo, a consciência de que cada dia de internamento desnecessário compromete simultaneamente a dignidade do doente e a sustentabilidade do serviço público.

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