Violência que educa no silêncio

Quando um pai agride a mãe em frente do filho de nove anos, como aconteceu em Machico recentemente, não é apenas a mulher que sofre. A criança também sofre e percebe de repente que a casa, aquele lugar que deveria ser seguro, pode ser afinal o mais perigoso.

Este caso, particularmente grave, não passou despercebido além-fronteiras. Foi noticiado em Espanha, evidenciando a seriedade da violência doméstica em Portugal e a atenção internacional que o tema merece. A Polícia de Segurança Pública registou 297 casos de violência doméstica numa única semana, entre 23 e 29 de agosto e efetuou cinco detenções, incluindo o caso da Madeira. Estes dados demonstram que a violência doméstica é uma realidade diária e urgente. “Estes números semanais alertam para a persistência e gravidade deste problema social em Portugal”, escreve o jornal espanhol La Razón.

E este não é um episódio isolado. Em 2024, foram registadas mais de 30 mil queixas de violência doméstica em Portugal. A esmagadora maioria das vítimas são mulheres e a maioria dos agressores são homens. E claro que há casos de homens agredidos também, mas os números deixam claro que a violência doméstica é sobretudo dirigida contra mulheres. No ano passado, morreram 22 pessoas vítimas de violência doméstica em Portugal, 19 delas mulheres. A impunidade persiste e mantém o ciclo.

A APAV apoiou 11.993 vítimas ao longo de 2024, quase 30% mais do que quatro anos atrás. Só no primeiro trimestre de 2025, 1.412 pessoas foram acolhidas em estruturas de proteção: 741 mulheres, 22 homens e 649 crianças. Sim, crianças.

Cada criança que presencia uma agressão é também vítima. O impacto é profundo: medo, trauma, ansiedade e muitas vezes a repetição de padrões na vida adulta, sejam eles através de vícios ou de violência também. Ver violência em casa é, por si só, uma forma de abuso infantil.

O problema não é apenas individual…. É estrutural. Persiste a cultura do silêncio, o estigma da denúncia e a ideia de que “entre marido e mulher não se mete a colher”. Mas é preciso meter, sim. É um problema social que nos atinge a todos. Falhamos com as mulheres quando não lhes damos mecanismos eficazes de proteção. Falhamos com as crianças quando não garantimos um crescimento livre de medo.

Falhamos enquanto comunidade quando aceitamos que mais de 30 mil casos por ano não resultem em justiça efetiva. A justiça que não protege legitima. A sociedade que não reage perpetua.

Não se trata apenas de punir agressores. É preciso urgentemente quebrar o ciclo. Investir em educação, ensinar desde cedo que violência não é amor (seja ele em contexto familiar ou amoroso), criar programas de apoio que funcionem sem burocracia e garantir que escolas e serviços sociais reconheçam cada caso como violação dos direitos da criança.

O caso de Machico tem mais de uma semana, mas não podemos deixá-lo cair no esquecimento. Violência doméstica não é notícia apenas quando acontece. É uma realidade que deve estar sempre na agenda porque cada dia de silêncio é mais um dia de medo para as crianças e as mulheres que sofrem às mãos de alguém que as devia amar.

A pergunta é simples: que sociedade queremos ser? Uma que olha para o lado, permitindo que um menino de nove anos aprenda que amar pode doer? Ou uma que enfrenta a violência e garante que este ciclo termina?

A resposta está em nós. O silêncio é cúmplice. Cada dia que adiamos agir é um dia em que outra criança aprende em casa a ter medo.

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