O amor (não) dói

A violência doméstica é uma das mais antigas feridas da humanidade. Tão antiga quanto o fogo, tão repetida quanto a fome, tão herdada quanto o medo. Desde os primeiros homo sapiens que a mão que deveria acolher e proteger se transformou, demasiadas vezes, em arma contra quem mais próximo está.

Mas a pergunta persiste: porque é que as pessoas batem nas pessoas que amam?

A resposta não cabe num único parágrafo. Há quem bata porque precisa de controlar, porque o poder lhes dá a ilusão de grandeza. Há quem bata porque foi batido e aprendeu que o afeto pode vir envenenado, com estalos e insultos entrelaçados. Há quem bata porque confunde respeito com obediência e acredita que o medo é mais eficaz do que o diálogo. Mas, seja qual for a justificação, nenhuma é suficiente. A violência nunca é amor.

Para uma mulher, vítima desta engrenagem de terror, cada dia torna-se um campo minado. A casa, que deveria ser abrigo, transforma-se em cárcere invisível. O olhar desconfiado, a palavra cortante, o silêncio que pesa tanto como o grito. A agressão raramente começa com um murro. Começa com pequenas coisas: uma crítica constante, uma proibição, um controlo disfarçado de cuidado. E, quando se dá por isso, a liberdade já está acorrentada.

E as crianças? Elas veem tudo. Podem não falar, podem até brincar na sala ao lado, mas cada barulho de porta a bater, cada insulto atravessado nas paredes, grava-se na memória como cicatriz. Crescem a aprender que o amor pode ser violento. Que quem devia proteger pode ser o primeiro a magoar. E o risco é imenso: uma criança que cresce num lar violento pode, no futuro, repetir a violência como agressor ou aceitá-la como vítima. O ciclo passa de geração em geração, como uma herança maldita.

Por isso, é preciso coragem. A coragem de falar, de pedir ajuda, de dizer “basta”. Mas também é preciso que a coragem da vítima encontre uma resposta firme do Estado. De pouco serve denunciar se a justiça for lenta, indiferente ou permissiva. Cada vez que um agressor fica impune, a mensagem que passa é a de que bater compensa, de que controlar a vida de outra pessoa pode ser aceitável, de que as marcas no corpo e na alma podem ser relativizadas.

A penalização é, por isso, essencial. Não apenas para punir quem agride, mas para mostrar a todos os outros que a violência doméstica não é tolerada. A condenação tem de ser clara, pública, exemplar. Porque só assim se quebra o ciclo de impunidade. A justiça, quando funciona, é também pedagógica: diz ao agressor que não tem direito a repetir, dá à vítima a confiança de que não está sozinha, e mostra à sociedade que há linhas que não podem ser cruzadas.

Mas não basta punir. É preciso proteger. A denúncia deve abrir portas a casas de abrigo, a acompanhamento psicológico, a redes de apoio social que permitam às vítimas recomeçar sem medo. Porque denunciar e voltar para a mesma casa, para o mesmo agressor, é condenar-se a uma espiral ainda mais perigosa. O Estado deve ser o aliado forte, a mão que ampara quando tudo o resto falha.

Importa também lembrar que, embora a maioria das vítimas sejam mulheres, há homens que sofrem em silêncio a mesma violência. E pais às mãos dos filhos. A vergonha e o preconceito fazem-os calar, mas o sofrimento é real. A violência doméstica não tem género: o que tem é agressor e vítima, e cada caso deve merecer a mesma atenção e proteção.

Bater nunca foi e nunca será um gesto natural. É um desvio, um abuso, uma perversão da relação humana. O que é natural é o toque que conforta, a palavra que abraça, o silêncio que respeita. O que é natural é a ternura, e é por isso que a violência, quando acontece, nos fere tão profundamente: porque subverte o que de mais humano temos.

Um futuro melhor tem de começar hoje. No presente. Com cada denúncia, com cada condenação justa, com cada criança a quem ensinamos que o amor não dói. É responsabilidade de todos — vizinhos, amigos, instituições, Estado — não virar a cara. Porque quando uma mulher é salva, também uma criança é salva. Quando um homem encontra apoio, também a sua dignidade é restaurada. E quando uma criança cresce em paz, um adulto inteiro nasce para o futuro.

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