Lá em casa havia uma gaveta na cozinha que não se abria todos os dias. Ficava ali, discreta, ao lado da pia. Lá dentro guardavam-se coisas antigas: panos de croché, caixas de fósforos, velas de cera, novelos de carros de linha, medicamentos – e entre tudo isso, o caderno de receitas. Era uma gaveta onde cada coisa tinha o seu lugar, mesmo que ninguém soubesse bem porquê.
Naquele tempo, quase toda a gente tinha um caderno assim. A minha mãe também tinha o dela, embora não o usasse muito. As comidas do dia a dia sabia-as de cor. O caderno era mais para bolos e pudins, aquelas receitas que se faziam só de vez em quando.
Era de capa preta, simples, com folhas já amareladas pelo tempo. Algumas manchadas, outras soltas. Não era volumoso, mas tinha o essencial para aquelas ocasiões em que se queria fazer diferente.
Era tudo escrito à mão. Lá estavam as orientações para fazer um bom pudim de ovos, um bolo de bolacha com manteiga, açúcar e café; o pudim de maracujá, o bolo preto, o bolo de família, com anotações na margem sobre o tempo de cozedura ou quantidades ajustadas.
Nem sempre tudo saía como se queria. Bastava um erro na pressa de apontar, uma medida trocada, uma pitada a mais ou a menos. O bolo não crescia, o pudim talhava. Às vezes era por falta de um ingrediente, outras pelo exagero. Outras falta de jeito. Mas era assim que se aprendia.
As folhas do caderno espelhavam isso. Umas só com a lista de ingredientes, outras com anotações na margem: “com menos açúcar fica melhor”, “cozer mais cinco minutos”, “fica bem com coco por cima”. Nenhuma receita era absoluta — serviam como base. O resto vinha da prática, da tentativa, da mão de quem fazia.
Mesmo com poucas receitas, aquele caderno dava jeito. Era sobretudo útil para os bolos e doces, que exigiam mais precisão. A minha mãe, para os pratos do costume, bastava-lhe a memória. Mas gostava de escrever o que saía da rotina — aquilo que se fazia menos vezes ou que alguém lhe tinha ensinado. Algumas receitas tinham vindo de vizinhas, outras copiadas de embalagens, outras ditadas ao telefone. Um caderno modesto, sim, mas muito vivido por dentro.
Durante algum tempo, as revistas de receitas só se viam na cidade do Funchal. Em Santana ainda não tinham chegado — só mais tarde começaram a aparecer devagarinho, nas papelarias. Quando a moda pegou, entraram nas casas e ficaram. A “Teleculinária” era a mais conhecida.
Também era comum que as jovens, ao casar, levassem consigo um caderno de receitas.
Algumas já o iam preenchendo antes do casamento, com receitas da mãe, das tias, das vizinhas. Outras começavam depois, conforme iam aprendendo. Era uma forma de levar consigo os sabores da casa de origem — uma espécie de herança gastronómica prática. Até se apontavam, por vezes, as receitas que a sogra fazia e que o noivo mais gostava.
Hoje, as receitas estão por todo o lado: vídeos, fotografias, tudo muito explicadinho. Mas falta-lhes a margem de erro, o improviso, a letra inclinada escrita à pressa num canto da página. As receitas de agora saem sempre direitinhas — talvez por isso nos digam menos.
Aquele caderno não era grande nem cheio. Mas o que lá estava fazia parte da nossa vida.E é por isso que, mesmo sem saber onde foi parar, continuo a lembrar-me dele como se ainda estivesse naquela gaveta. Fechado, discreto, à espera de ser aberto num sábado qualquer.