Quem fica, nidifica

Talvez uma das maneiras de não nos guerrearmos seja saber mais do outro, colocarmo-nos na sua pele, reabrirmos as histórias não resolvidas da História com uma vontade de sarar essas vulnerabilidades. Neste contexto, foi com enorme agrado que soube que a Orquestra Indígena do Brasil se apresentou com a criação de Eduardo Martinelli e de Norberto Cruz, Arapy Aguasu — Sinfonia entre Dois Mundos, pela primeira vez na Europa, no palco do jardim municipal do Funchal. Cabe-nos, pois, escolher a sinfonia em detrimento da cacofonia.

Quando estive na Madeira, neste Verão, revi amigos, familiares e vi coisas que me deixaram esperançoso, como o Projeto InFinito, encabeçado por Inês Costa Neves e Laura Andrade, que utiliza a arte como ferramenta transformadora, trabalhando com crianças, ajudando-as a delinear o seu caminho por entre a natureza, os migrantes e a realidade do sonho. Aqui, pratica-se uma arqueologia viva da empatia. Uma das intervenientes, a poetisa palestiniana Shahd Wadi, publicou recentemente um livro de poesia, Chuva de Jasmim, e disse numa entrevista à Antena 1 que, quando alguém chega à Palestina, recebe uma mensagem no respetivo telefone com os seguintes dizeres: «Bem-vindos à terra do jasmim e das oliveiras». Daqui por algum tempo, ainda haverá jasmim, oliveiras e palestinianos? Não ocupemos Gaza, mas sim a fome em Gaza!

No Art’Camacha, vi rostos conhecidos, trocámos palavras para além da circunstância, provei o gaiado do Sr. Silvino, que veio ao despique do Porto Santo à Camacha, e o seu vinho seco num corno — afinal, a tradição não é só georgiana —, falei um bocadinho com a Sr.ª Isabel da Eira, às voltas com a sua lã, — ao lado da Sr.ª Maria, de mais de 80 anos, com o seu tear —, a quem pedi o número da estoniana Irina, que encabeça a Associação Enfia o Barrete e que pretende redinamizar o trabalho, e o saber, da lã de ovelha na Madeira. A Irina veio para a Madeira num projeto de voluntariado depois dos grandes incêndios que assolaram a Madeira em 2010 — é uma pena que, enquanto comunidade e país, não tenhamos ainda sabido pôr cobro a este enorme problema que tem várias declinações —, e foi ficando. Quem fica, nidifica.

Dias depois, fomos visitá-la na sua nova oficina nos Jardins do Palheiro, donde trouxe, entre outras coisas, o Caderno de Campo n.º 8 — Onde a lã vive. O Miguel, que nos levou a compreender a estufa e a sapiência das suas mãos, disse-nos onde era. Quem puder, passe por lá que não se arrependerá. Afianço-vos que a lã também vive na Irina.

Infelizmente, a chuva trocou-nos as voltas e não pudemos participar no «Cinema no Bairro», em Santo Amaro, no Funchal. Um dos bairros ditos problemáticos em que a cultura tem um enorme papel a desempenhar para o desencravar, trazer novas possibilidades e dar verdadeiramente a conhecer o bairro à comunidade em geral. Por conseguinte, as meninas não puderam ir à oficina de cinema que inicia cada sessão — estava muito curioso relativamente às crianças que iriam participar, e à sua interação com as minhas filhas, que não são dali, sendo-o, e era também isso que lhes queria ter mostrado; talvez não por acaso, iriam mostrar a curta-metragem Migrants, a história de dois ursos polares que, sendo obrigados a exilar-se devido ao aquecimento global, se deparam com ursos pardos, com quem tentarão coabitar. Ficará para uma outra vez o encontro com o Filipe Ferraz e a Inês Tecedeiro da Wamãe — Antropologia Pública.

A Ucrânia celebrou o seu 34.º aniversário de independência, durante a guerra, e neste mês, celebram-se os 80 anos que as bombas de Hiroshima e Nagasaki devastaram vidas, matrimónios e patrimónios nas respetivas cidades. Em 2024, os Hibakusha, sobreviventes da bomba atómica, viram a sua luta por um mundo sem bombas atómicas e de hidrogénio galardoada com o Prémio Nobel da Paz, os mesmos que enfrentaram discriminação e preconceito (ver, por exemplo, o recente filme Touch do realizador islandês Baltasar Kormákur). Como dizia o professor Ivo Meco: «quem planta uma tamareira, nunca comerá frutos dela; é para a geração seguinte». Andaremos a plantar tamareiras que permitam, a quem numa ilha vive, não estar ilhado — no dizer de Zia Soares?

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