Não sei se damos pelos milagres de cada dia. Estamos tão focados no mal que (nos) acontece ou no que pode vir a acontecer, que nos esquecemos de perceber o tanto que de bom acontece nas nossas vidas: sofremos antes do tempo, antecipamos desgraças que talvez não venham a acontecer, preparamos discursos para o ataque, quando o inimigo chegar…. Gastamo-nos assim e desperdiçamos a capacidade de apreciar o que de fantástico acontece no nosso quotidiano.
O Cardeal Tolentino, num texto sobre estas coisas maravilhosas que (não) vemos, escreveu que “Não há dia nenhum que não sejamos visitados por um anjo” e recorreu àquela frase de S. Paulo, na carta aos Hebreus (13:2) que alerta exatamente para a necessidade de estarmos atentos: “Não vos esqueceis de praticar a hospitalidade; pois agindo assim, mesmo sem o perceber, muitos acolheram anjos”. E lembramo-nos de Abraão. E lembramo-nos de nós, em tantos episódios da nossa história, em que sentimos a mão de Deus a endireitar o que parecia impossível.
Há milagres, sim, meu amigo. Todos os dias. É a natureza que, apesar de tanta afronta, teima em renascer; é a flor que rasga as rugas da secura do chão; é o sol que rompe o medo das noites mais escuras; é o gesto, o cuidado, a atenção, o sorriso, a palavra, a esperança que mora em lugares estranhos.
Talvez pudéssemos estar mais atentos para colher o sentido do que (não) nos acontece. As grandes coisas passam-nos ao lado, porque o nosso olhar não as capta. Talvez depois. Talvez um dia. Talvez.
Mas quando isso acontece, meu amigo, que saibamos agradecer. O Tempo não é necessariamente aquele que marca a nossa urgência. Os milagres existem. Eu sei. Só temos de os reconhecer, com a humildade de quem sozinho não é ninguém.