A culpa é de todos

A responsabilidade pelo momento que vivemos é, inevitavelmente, coletiva.

Não é fruto de um dia, nem de um só partido, nem apenas de quem nele votou. É o resultado de um percurso longo, pavimentado por ações e omissões de múltiplos atores — institucionais, políticos, mediáticos e individuais — e, em maior ou menor grau, por cada um de nós.

Como foi possível chegarmos a este ponto? Como regressaram ao espaço público ideias e preconceitos que julgávamos confinados à História? Como se permitiu o retrocesso em direitos arduamente conquistados, dos direitos das mulheres aos direitos fundamentais de todos, enquanto sociedade?

A extrema-direita e a direita radical têm estado na vanguarda desta ofensiva: atacando direitos, fragilizando instituições, propagando informação falsa e disseminando o ódio. Porém, é ingénuo assumir que chegaram aqui sozinhas.

Todos os dias ouvimos, sem contestar, afirmações que mereciam ser interrompidas, corrigidas ou desmentidas. Tolerámos piadas machistas em conversas privadas e em grupos de mensagens. Aceitámos comentários racistas disfarçados de opiniões pessoais. Assistimos a humilhações e violência, respondendo com um encolher de ombros, um “não posso fazer nada” ou um “ela pôs-se a jeito”. Convencemo-nos de que não era connosco, que não passaria dali, que era exagero. Mas é precisamente nesse espaço de complacência que o autoritarismo germina.

A comunicação social também falhou. Procurando audiências, deu palco ao populismo, confundiu imparcialidade com neutralidade perante o inaceitável e, demasiadas vezes, transforma discursos de ódio em entretenimento. Noticiar não é o mesmo que amplificar a retórica antidemocrática.

A responsabilidade recai também sobre as forças políticas. A direita, que preferiu alianças de circunstância a princípios, normalizando discursos de ódio e retrocessos nos nossos direitos (sejam humanos, sejam laborais) para garantir resultados eleitorais. O centro, que procurou agradar a todos, sacrificando valores morais e éticos em nome de consensos superficiais. A esquerda, que não protegeu os seus, enredou-se em disputas internas e recuou perante o medo de perder votos, mesmo quando era imperativo defender direitos fundamentais.

Os partidos, no seu conjunto, subestimaram os sinais de alerta. Alimentaram o monstro do extremismo como arma contra adversários de ocasião. A normalização não veio só da rua, fez-se também nos corredores do poder.

Enquanto isso, estas figuras radicais captam a atenção da esquerda, fascinam a direita e atraem os media, ocupando o espaço mediático enquanto as decisões estruturantes são tomadas nos bastidores, reféns da retórica que capta audiências. Promove-se a despolitização, mina-se a confiança nas instituições e vende-se a ideia de que a lei deve submeter-se à “força do poder do voto popular”, ignorando que a democracia é também o respeito pelos limites constitucionais, pelos direitos humanos e pelo respeito pela dignidade humana.

A normalização do inaceitável fez-se, em parte, à vista de todos, em horário nobre, entrevista após entrevista até que o discurso extremista deixou de chocar. Mas a culpa não é apenas dos meios que transmitem: é também de quem convida, de quem aceita participar e de quem lhes dá audiências.

A ascensão do partido Chega não é uma falha isolada do sistema; é o reflexo deste, sustentado pela inércia, pela apatia e pelo abandono do compromisso ativo com a democracia. Ao culparmos apenas “os outros”, esquecemo-nos de que a política existente é aquela que, por ação ou omissão, permitimos. O silêncio e a passividade perante o discurso de ódio são também formas de o legitimar. Porque também se destrói uma democracia com o silêncio.

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