A gaiola do grilo e a descoberta do nada

Eu e a minha irmã desmanchávamos todos os brinquedos que nos ofereciam quando éramos miúdos. Todos sem exceção. Não se tratava de destruir, mas de desconstruir, o que é bem diferente. A intenção era boa e válida. Queríamos conhecer o seu interior, perceber como funcionavam, ver de que matéria era feita a sua alma e foi assim que cedo descobrimos – eu, pelo menos, descobri – que tudo é nada.

De certa forma, lamentavelmente, esta descoberta fez-me perder pouco a pouco o interesse pelas coisas que insuflam a vida, de bicicletas a motas e carros, de futebol a jogos de vídeo e computadores, de trabalhos oficinais a cenas de agricultura e criação de animais, de jogos de azar a esquemas para montar negócios e ganhar dinheiro, ou seja, remeteu-me para um vasto universo de vazio, solidão e ignorância. Hoje não percebo patavina acerca de coisa alguma, não sou perito em nada e não nutro especial interesse pelo que quer que seja. Todo o meu conhecimento é geral e a minha cabeça é um abismo.

Às vezes, a consciência desta realidade abala-me como um terramoto de magnitude infinita e eu fico encolhido num canto a tremer, cheio de medo, como se fosse um boneco prestes a ser desconstruído por um miúdo, prestes a revelar que sou nada. Sim, somos todos iguais. Ninguém assume nunca o mal que comete, mas apenas – e já é muito – o bem que desfaz, ou desfez, como se desfazer o bem não constituísse uma pura maldade. Já agora convém esclarecer que o grau de pureza da maldade é sempre aferido através da nossa atitude face às pequenas coisas do quotidiano e, provavelmente, é disso que tenho medo – do mal corriqueiro. E tu também, com certeza.

Afinal, tu – sejas lá quem fores – és tão complexo e tão simples como eu e o resto da humanidade. Para dizer a verdade, tu – tal como eu e o resto da humanidade – não te apercebes do que te rodeia até que a coisa em si aconteça, isso que temes, isso que amas, isso que odeias, isso que veneras, isso que desejas, o que só por si constitui um paradoxo, pois nem sequer te darás conta da tua própria morte. Estás vivo – quero dizer, estou vivo, estamos vivos – e, no entanto, já morreste – já morri, já morremos. É assim mesmo.

Não sei se me faço entender. Se calhar, não. Mas não importa. Um pouco de prosa difícil, sobretudo no mês de agosto, também faz bem ao espírito. Não vos parece? Às vezes, uma certa dose de conversa caótica, intensa, até mesmo confusa, ébria e alucinada, ajuda a quebrar a leveza estival, esta maravilhosa leveza que percorre as ruas pelo lado da sombra e senta-se nas esplanadas a beber cerveja e vinho branco e vai à praia de chinelos e toalha na mão como se não houvesse desordem no mundo, nem tempo amanhã, nem espaço ontem, e perde-se nos caminhos do verão até ser, também ela, nada dentro de nós – como a alma.

De repente, não sei porquê, esta cavaqueira fez-me lembrar que quando vivia em África todos os dias tinha uma história nova para contar. Mesmo que ficasse sentado no alpendre da palhota a ver as horas passar, acontecia sempre qualquer coisa espantosa, qualquer coisa que era minha também, ao passo que aqui, agora, a história é sempre a mesma, seja real ou ficção, e até parece que não me pertence. Esta lembrança, por sua vez, trouxe-me à memória a incapacidade que tenho em assumir os feitos que me são atribuídos, mas que de facto não me pertencem, por mais que sejam meus.

Por exemplo, uma vez, quando andava na escola primária, a professora pediu-nos para construirmos uma gaiola e trazermos lá dentro um inseto à nossa escolha, podia ser uma borboleta, um gafanhoto, um besouro. Eu fui para casa com a ideia de fazer uma gaiola para um grilo e passei a tarde inteira na loja do meu pai, mas não consegui executar o trabalho. Entretanto, o meu pai chegou e em três tempos fez uma gaiola perfeita e a gaiola brilhou na sala de aula, com um grilo atemorizado lá dentro. Todos gabaram o meu trabalho, mas eu nunca o assumi como meu. Para me salvar da acusação, em vez de dizer que o meu pai me tinha ajudado, expliquei aos colegas ter sido eu a ajudá-lo, dando-lhe as indicações sobre o tipo de gaiola que pretendia.

A minha vida é assim.

De resto, volto sempre ao princípio, ou seja, de cada vez que me desconstruo descubro que sou nada…

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