A casa desviada

Há uma ideia de casa que não é apenas abrigo. É estrutura moral, espessura cívica, gesto político silencioso. A arquitetura, quando serve a habitação coletiva, não se limita a erguer paredes: organiza a permanência, ampara o quotidiano e desenha a dignidade no território.

O que dizer, então, quando essa missão é desvirtuada? Quando edifícios concebidos sob o signo da equidade, erguidos com apoios públicos e legitimados pelo discurso da justiça social, são desviados do seu fim original para se converterem, quase de forma expedita, em bens de exploração turística?

Não se trata de um mero desvio funcional. Trata-se da erosão lenta — e por vezes deliberada — do pacto urbano: aquele que exige que o espaço construído com fins públicos permaneça ao serviço da vida e não à mercê da rentabilidade. Quando a contenção se transforma em oportunidade de rendimento, e o alojamento pensado para habitar se converte em produto de mercado, o que está em causa não é apenas uma disfunção administrativa — é uma falência ética.

Dir-se-á que os processos seguem a norma, que os papéis estão em ordem. Mas a arquitetura não se basta com legalidade. Reclama intenção, consequência, clareza de propósito. A cidade não se constrói com regulamentos apenas; constrói-se na confiança entre quem projeta, quem regula e quem habita. E quando essa confiança é comprometida, dissolve-se a ideia de pertença. Fica a cidade como cenário — transitada, mas cada vez menos vivida.

Não é um fenómeno técnico, nem uma fatalidade do mercado. É o resultado de escolhas acumuladas, de omissões tidas por neutras, de um silêncio prático que se repete à escala do território. A responsabilidade é partilhada entre os que promovem sem regular, os que autorizam sem escrutínio e, de forma mais danosa, os que omitem para ludibriar. Não basta construir bem — é preciso cuidar do que se constrói.

Recorda-se, com sobriedade e respeito, a figura de Nuno Portas — não como símbolo, mas como presença crítica. Soube pensar o habitar como ato político e cultural, consciente de que o espaço construído é sempre extensão de um pacto social. A sua obra, vivida, escrita e edificada, lembrava que não se desenha apenas forma, mas tempo, permanência e vizinhança. E, se como escreveu Keil do Amaral, “o problema da habitação é, antes de tudo, um problema de humanidade.” Então hoje, essa humanidade exige acima de tudo, vigilância. Não de retórica, mas de prática.

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