Francis Collins, um dos responsáveis pelo mapeamento do DNA humano, revelou que o que o preocupa mais neste momento da história é o défice de compaixão. O que é que nos aconteceu, pergunta, para que deixássemos de nos preocupar com os outros seres humanos, com os nossos próximos, os que são da nossa família, os que vivem no fundo da rua, os que estão do outro lado do globo? Face às injustiças, às mortes desnecessárias, à violência física e verbal, à pobreza, à indiferença, levantamos e baixamos os ombros pesados pela inevitabilidade e viramos as costas. Ainda há pouco tempo, reagiríamos com espanto e repúdio, faríamos manifestações e correríamos para ajudar. O momento da pandemia revelava-se como o momento de uma renovada humanização.
De facto, parecia que a sociedade tinha compreendido que o que nos une e que permite o desenvolvimento, o florescimento das relações, o avanço como grupo, é a compaixão. Recuperaríamos o pensamento humanista, recusaríamos as trevas, num impulso iluminista.
Mas, não. No momento em que as emoções negativas parecem liderar os movimentos sociais, numa espécie de libertação de reações hiper-ansiosas aos fenómenos, com dificuldade de lidar com o que acontece à nossa volta, voltamo-nos para respostas extremas de ódio, de esquecimento, de aceitação de injustiças. E encontram-se culpados fáceis: prenda-se, extradite-se, leiam-se nomes de crianças como de criminosos se tratassem, afaste-se, anule-se, negue-se. O problema não é apenas ser diferente, é ser pobre, é ser necessitado, é sofrer, estar no caminho de alguém ou de qualquer coisa.
Veja-se o caso dos incêndios, com quem nos governa a fazer a rodagem anual das férias, a fotografar-se em festas, com o país a arder. Há poucos anos atrás, com o nosso índice de compaixão ainda alto, teríamos gritado escândalo, caíam um ou dois ministros e o governo seria decretado cansado pelo presidente da república e ser-lhe- ía dada uma lição de como devia cumprir regras. Uma lição ministrada pelo professor dos afetos, como se se tratasse de um raspanete a um aluno incumpridor e a arriscar a negativa. E teria feito bem. Pena é que tenha esquecido as boas lições. E que o presidente de todos nós tenha descompaixado, com os novos ventos da política. Se até ele muda, porque é que nós não haveremos de mudar? Na saúde, na habitação, na educação, no viver quotidiano das cidades, na perda de população, na perda de qualidade de vida.
O esquecimento da compaixão é um fenómeno complexo, resultado de uma combinação de fatores sociais, culturais e individuais: o individualismo e a competição, o excesso de informação e notícias negativas, a dispersão da responsabilidade, a falta de uma educação emotiva, a existência de condicionantes culturais adversas e a falta de sensibilização para a empatia. E também resultado da política e do cenário contemporâneo. Sem exemplos de comportamentos de compaixão profunda, tornar-nos-emos sempre mais materialistas e desumanos, treinados para encontrar segurança em círculos viciosos de tramas e cálculos, palavras de ordem vazias, que alimentam ódios e apresentam esperanças vãs. Uma política sem responsabilidades e sem consequências que faz dos fortes cidadãos fraca gente.
Sem memória, sem obrigação moral e ética, sem justiça, sem exemplo, estamos perante a sociedade que esquece o outro e imputa à vítima o próprio sofrimento. Não ter casa é culpa de quem não a pode comprar, ser pobre é culpa de quem não tem dinheiro, não ter emprego é culpa de quem não trabalha, estar doente é culpa de quem tem a doença, ser vítima de violência é culpa de existir. É o colapso da tradição do pensamento humanista, com a perda de uma visão global e da capacidade crítica. Porque a política percebeu que estamos na era de falar às emoções mais individualistas, esquecendo o coração e a cabeça, nestes dias febris, impondo de forma opaca soluções que são muros altos que não poderemos facilmente ultrapassar sem sair magoados com o confronto.